sábado, 11 de junho de 2016

ERA O DIA DOS NAMORADOS, “E TENDO AMADO OS SEUS AMOU-OS ATÉ O FIM”

ERA O DIA DOS NAMORADOS,
“E TENDO AMADO OS SEUS AMOU-OS ATÉ O FIM”

Estávamos no último dia de retiro de encerramento do semestre com os seminaristas, em casa de veraneio, ainda almoçando por volta das treze horas, do dia 12 de junho de 2007. Alguém de casa me liga, desesperada, sem conseguir dizer ao certo o que queria. Pensava que não conseguia ouvir e entender pelo converseiro à mesa, e me dirigi para o jardim da frente, onde temos uma imagem de Nossa Senhora das Graças, devoção de minha mãe. Pedi então que passasse o celular para ela, que já me atendeu dizendo aos prantos: “seu pai faleceu!”

Por alguns minutos fiquei sem reação. Na verdade um refluxo de reações se confundiu em mar revolto e bravio. Uma ânsia de partir e uma comoção paralisante. O olhar da imagem me atraiu e tranquilizou. Tomei consciência de que estava na casa de lazer dele e, de algum modo, ela inspirava a sua presença. Tive que retornar e anunciar a todos a terrível notícia. Ali acabou o almoço, o retiro, o passeio, junto com a alegria de todos. Mas, nasceu uma solidariedade condoída de todos, que se prolongou por muitos dias. Então fizemos a viagem ao encontro do corpo de meu pai juntos. Eu, porém, estava solitário e inconsolável em mim mesmo. Nunca me amargou retornar à casa paterna. Acredito que aquela viagem tenha sido a pior que já fizera. Não retornava para ver meu pai, mas tão somente o seu corpo. Ele não mais me falaria, nem eu tornaria a abraçá-lo, beijá-lo, ouvi-lo.

A caminho, acelerava nervoso, todavia não avançava, impedido pela vagareza de um caminhão de carga à minha frente. Já me estressava quando um seminarista percebeu o letreiro da carroceria e me chamou a atenção para que lesse: “Pai a gente nunca esquece!” Pronto! Ali, não tive dúvidas de que estávamos acompanhados na viagem e continuei rememorando os últimos dias que tivemos juntos. Recordações tão pessoais que somente eu poderia manter vivas na memória. Palavras que ele me disse e gestos que eu testemunhei. Impressões minhas e ensinamentos feitos a mim. Sou seu guardião, cada irmão e nossa mãe, cada amigo ou parente, cada conhecido, somente cada um pode guardar aquilo que dele recebeu ao longo dos seus 82 anos de vida.

Quando chegamos em casa, avistei meu irmão mais velho, em pé ao lado do caixão em que o deitaram. Sozinhos na varanda de casa. Fiquei novamente sem ação, contemplando-os. Escutei no meu interior uma voz que dizia: “deixe ir”. Estranhei e me examinei de onde vinha; por que esta frase? Lembrei do evangelho lido naqueles dias, da ressurreição do filho da viúva da cidade de Naim. Em que Jesus se apieda da viúva e ressuscita a sua única companhia. Não dei muita atenção a isto naquele momento. Então me aproximei e vi que meu irmão estava em estado de choque, imóvel, fixo em nosso pai. O evangelho ainda clamava em minha consciência e atinei que nossa mãe, agora viúva, não estava ali. A família não estava reunida e, como se meu pai me mandasse buscá-la, fui ao quarto do casal. Lá estava ela, inconsolável e suspensa, meio fora de si, ao que me olha e diz: “eu ouvi uma voz em meu ouvido que dizia para deixar ele ir. Não me contive, abracei minha mãe e choramos juntos. O meu consolo para ela foi dizer que também ouvi a mesma voz e lhe contei da viagem.

O consolo da hora da morte não é consolo. É outra coisa, mas não conforto ou compensação. É que a sensação de impotência, perda, abandono, saudade sem despedida, provoca uma sensação maior do que qualquer sentimento e pode gerar reações nunca antes experimentadas. A nossa experiência foi esta: deixá-lo ir. Que queria dizer aquela voz? O que significaria para todos consentir na morte dele? Por que era imperativo que sua partida não fosse negada pela nossa vontade e apego. Por que despedir-se dele de boa vontade seria consolo para a família? Não sei bem, mas, se não estivéssemos tranquilos, talvez não percebêssemos tantos sinais de sua presença naqueles dias.

Era o dia dos namorados. Meu pai sempre encomendava flores para minha mãe, mas andara muito debilitado naqueles dias e ainda não o tinha feito. Minha mãe mudaria a posição da imagem de Nossa Senhora da Piedade para a estante da televisão, em frente de onde ficava uma cadeira do papai, que ele costumava sentar para assistir ao noticiário (ela herdou para fazer os seus bordados e orações). Não deu tempo! Ela relutou em seguir a intuição e colocar uma imagem sacra ao lado de uma televisão. Acontece que após o almoço, por volta das treze horas, ele se senta justamente ali para o seu costumeiro jornal. Quando ela vem trazendo o seu cafezinho já o avista ofegante. Só deu tempo de tomá-lo nos braços e ele expirou, numa postura muito semelhante à da imagem de Maria com Jesus em seu colo.

Antes, na manhã daquele mesmo dia, ele tinha dito à esposa de um vizinho, também enfermo, que “ainda hoje” estariam no paraíso. Quando a vizinha soube da morte de meu pai correu apressadamente ao hospital e ainda viu o seu marido desfalecendo. Isto ela só contou à nossa mãe alguns dias depois.


No cortejo fúnebre de meu pai, muitos se somaram naquele gesto solidário e apaixonado. Os devotos do falecido, os amigos dos entes queridos, os conhecidos, os admiradores, e até os curiosos expressaram seus sentimentos condoídos. O enterro de pai foi no dia 13 de junho de 2007. Devoto de Santo Antonio, já eram muitas as coincidências. Aos 13 dias nasceu (13.12.25), às treze horas faleceu e aos treze seria enterrado. Naquela procissão a grande maioria do clero e do povo entoava cânticos que o bispo diocesano executava, intercalado pela Lira Nossa Senhor Imperatriz dos Campos e pela reza do Terço. Meu pai teve missa de corpo presente, presidida pelo bispo e concelebrada pelo clero. Ainda pude proclamar seu nome no ‘memento dos mortos’. Mas, confesso, não me entendam mal, é uma liturgia que não se almeja celebrar.

Mais duas cenas jamais esquecerei: Quando chegávamos ao cemitério um serviço de som se aproximava sem diminuir o volume. Já me constrangia, até que atinei para a música: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer. Você só me ensinou a te querer e te querendo vou tentando te encontrar. Vou me perdendo, buscando em outros braços seus abraços, perdido no vazio de outros passos, do abismo em que você se retirou e me atirou e me deixou aqui sozinho.” Desde então é impossível ouvir essa música, de Fernando Mendes, sem lembrar de Pai. Naquela hora já me convencia de que aquele enterro era um ato de amor.

A segunda cena se dá quando o caixão é descido os sete palmos. Minha mãe interrompe a primeira pá de areia molhada dos respingos daquela manhã, já quase ao meio dia, e rompe os suspiros dos choros com uma fala de lembrança apaixonada: “Você sempre me ofereceu flores no dia dos namorados, mas ontem você não teve tempo, hoje sou eu quem lhe ofereço.” E lançou suas flores sobre o caixão. Gesto seguido por todos os presentes, num momento em que apenas se ouvia o cair delas sobre ele. Meu pai e suas flores foram cobertos com a areia do cemitério e regados com as últimas chuvas do outono tobiense.

No dia seguinte, após o sepultamento, estávamos em casa naquele clima que não precisa nominar. Vendo a tristeza encarnada em minha mãe procurava alguma forma de lhe devolver a alegria que a despedida de meu pai lhe causou. Eis que me lembro da gaveta que meu pai nos proibia de abrir e xeretar. Propus a ela finalmente descobrirmos o que ele tanto escondia. Ela me olha com aquele semblante de quem se lembrou de algo, no caso de alguém, e concorda. Então lhe trouxe a gaveta e, finalmente, descobrimos o que continha.

Na gaveta de meu pai encontramos alguns pertences seus e de outros parentes dele e dela. Meu pai guardava ainda suas credenciais de militar e canetas velhas; sua caligrafia justifica seu gosto por elas. Mas, o surpreendente, além de algumas fotografias antigas de todos nós, foi uma oração, escrita a próprio punho, que, mais tarde, usamos um fragmento para compor o santinho de sétimo dia. O que realmente quero destacar dessa memória é a frase final da oração: “tendo amado os seus... amou-os até o fim.” (Jo 13, 1b) A conclusão da oração de meu pai era a introdução da Oração Sacerdotal de Jesus, escrita pelo evangelista S. João.

Eu me senti outra pessoa depois que perdi meu pai. Entendi que sua morte me fez mais humano, mais família e mais maduro. Finalmente seus ensinamentos se tornaram mais vivos do que quando ele nos repetia incansavelmente as mesmas coisas. Hoje o amo mais do que antes, ao menos tomei consciência disto. Sinto-me guardião de sua memória. Quis compartilhar esta página da minha vida tão cara, porque sei que tudo isto que experimentei me fez ver a morte de outra maneira. A morte não é a última fase da vida. As pessoas, quando nos deixam com amor, ficam ainda mais presentes, por que sempre foram presentes e vivas dentro de nós.

Desejo uma vida apaixonada e feliz dia dos namorados, pois como disse Diotimia a Platão: “A natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. [..] É em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham”. (In: O Banquete) A vida é um registro no mundo. Tudo fala: o silêncio mais eloquente dos presentes, o sentido mais nobre de seus gestos e as palavras mais memoráveis daqueles que nos deixam.