Sexta-feira da Paixão – Ano C
Estávamos no último dia de retiro de
encerramento do semestre com os seminaristas, em casa de veraneio, ainda
almoçando por volta das treze horas, quando alguém de casa me liga,
desesperada, sem conseguir dizer ao certo o que queria. Pensava que não conseguia
ouvir e entender pelo converseiro à mesa, e me dirigi para o jardim da frente,
onde temos uma imagem de Nossa Senhora das Graças, devoção de minha mãe. Pedi então
que passasse o celular para ela, que já me atendeu dizendo aos prantos: “seu pai
faleceu!”
Por alguns minutos fiquei sem
reação. Na verdade um refluxo de reações se confundiu em mar revolto e bravio. Uma
ânsia de partir e uma comoção paralisante. O olhar da imagem me atraiu e
tranquilizou. Tomei consciência de que estava na casa de lazer dele e, de algum
modo, ela inspirava a sua presença. Tive que retornar e anunciar a todos a terrível
notícia. Ali acabou o almoço, o retiro, o passeio, junto com a alegria de
todos. Mas, nasceu uma solidariedade condoída de todos, que se prolongou por
muitos dias. Então fizemos a viagem ao encontro do corpo de meu pai juntos. Eu,
porém, estava solitário e inconsolável em mim mesmo. Nunca me amargou retornar
à casa paterna. Acredito que aquela viagem tenha sido a pior que já fizera. Não
retornava para ver meu pai, mas tão somente o seu corpo. Ele não mais me
falaria, nem eu tornaria a abraçá-lo, beijá-lo, ouvi-lo.
A caminho, acelerava nervoso,
todavia não avançava, impedido pela vagareza de um caminhão de carga à minha frente.
Já me estressava quando um seminarista percebeu o letreiro da carroceria e me
chamou a atenção para que lesse: “Pai a gente nunca esquece!” Pronto! Ali, não tive
dúvidas de que estávamos acompanhados na viagem e continuei rememorando os
últimos dias que tivemos juntos. Recordações tão pessoais que somente eu poderia
manter vivas na memória. Palavras que ele me disse e gestos que eu testemunhei.
Impressões minhas e ensinamentos feitos a mim. Sou seu guardião, cada irmão e
nossa mãe, cada amigo ou parente, cada conhecido, somente cada um pode guardar
aquilo que dele recebeu ao longo dos seus 82 anos de vida.
Quando chegamos em casa, avistei meu
irmão mais velho, em pé ao lado do caixão em que o deitaram. Sozinhos na
varanda de casa. Fiquei novamente sem ação, contemplando-os. Escutei no meu
interior uma voz que dizia: “deixe ir”. Estranhei e me examinei de onde vinha;
por que esta frase? Lembrei do evangelho lido naqueles dias, da ressurreição do
filho da viúva da cidade de Naim. Em que Jesus se apieda da viúva e ressuscita
a sua única companhia. Não dei muita atenção a isto naquele momento. Então me
aproximei e vi que meu irmão estava em estado de choque, imóvel, fixo em nosso
pai. O evangelho ainda clamava em minha consciência e atinei que nossa mãe,
agora viúva, não estava ali. A família não estava reunida e, como se meu pai me
mandasse buscá-la, fui ao quarto do casal. Lá estava ela, inconsolável e
suspensa, meio fora de si, ao que me olha e diz: “eu ouvi uma voz em meu ouvido
que dizia para deixar ele ir. Não me contive, abracei minha mãe e choramos
juntos. O meu consolo para ela foi dizer que também ouvi a mesma voz e lhe
contei da viagem.
O consolo da hora da morte não é
consolo. É outra coisa, mas não conforto ou compensação. É que a sensação de
impotência, perda, abandono, saudade sem despedida, provoca uma sensação maior
do que qualquer sentimento e pode gerar reações nunca antes experimentadas. A nossa
experiência foi esta: deixá-lo ir. Que queria dizer aquela voz? O que
significaria para todos consentir na morte dele? Por que era imperativo que sua
partida não fosse negada pela nossa vontade e apego. Por que despedir-se dele
de boa vontade seria consolo para a família? Não sei bem, mas, se não
estivéssemos tranquilos, talvez não percebêssemos tantos sinais de sua presença
naqueles dias.
Era o dia dos namorados. Meu pai
sempre encomendava flores para minha mãe, mas andara muito debilitado naqueles
dias e ainda não o tinha feito. Minha mãe mudaria a posição da imagem de Nossa
Senhora da Piedade para a estante da televisão, em frente de onde ficava uma
cadeira do papai, que ele costumava sentar para assistir ao noticiário (ela herdou
para fazer os seus bordados e orações). Não deu tempo! Ela relutou em seguir a
intuição e colocar uma imagem sacra ao lado de uma televisão. Acontece que após
o almoço, por volta das treze horas, ele se senta justamente ali para o seu
costumeiro jornal. Quando ela vem trazendo o seu cafezinho já o avista ofegante.
Só deu tempo de tomá-lo nos braços e ele expirou, numa postura muito semelhante
à da imagem de Maria com Jesus em seu colo.
Antes, na manhã daquele mesmo dia,
ele tinha dito à esposa de um vizinho, também enfermo, que “ainda hoje” estariam
no paraíso. Quando a vizinha soube da morte de meu pai correu apressadamente ao
hospital e ainda viu o seu marido desfalecendo. Isto ela só contou à nossa mãe
alguns dias depois.
O dia de hoje, da Paixão do Senhor,
reúne tantos corpos, no mistério da morte, que só Nosso Senhor pode dar
sentido. A Paixão de Cristo é o maior gesto de amor, dar a vida pelos seus. Esta
é a maior prova de amor que há: dar a vida por alguém. Ainda escuto discussões
em torno do que seria maior: o amor ou a paixão? Unânimes confirmam que o amor
é maior do que a paixão. Jesus demonstra que o amor se expressa na paixão. Outro
dia eu disse que a paixão é a forma mais espontânea do amor. Acrescento hoje que
a paixão é o corpo e o amor a sua alma. A paixão é o movimento do amor. Amor sem
paixão é insosso, insípido e incolor.
A morte de Jesus é a expressão do
amor que se apaixonou. Portanto, do amor com paixão. Há um ano, quando comecei
a escrever essas meditações, numa Sexta-feira como a de hoje, eu dizia que as origens grega e latina dessa palavra explicam quase tudo
sobre a paixão. O primeiro sentido vem de Patio,
do latim, e se refere ao que foi sofrido por resignação e submissão, e Pathe do grego sentir. Deixar-se sentir
o sofrimento. Paixão é quando se sente, sem frieza ou desvio, consente em experimentar
a dor. A paixão dá sentido ao amor e sua experimentação por alguém manifesta o
quanto é essencial a 'com+paixão'. Sentir e querer o bem do outro sem sentir
também as suas dores trai o amor e nega a paixão. Todavia, há de se ater que a propriedade
do apaixonar-se não é andar por aí sofrendo o masoquismo das incompatibilidades
pessoais, mas a partilha das dores mútuas. Sofrer por alguém que aliviamos as
suas dores, isto sim é paixão.
No cortejo
fúnebre de meu pai, muitos se somaram naquele gesto solidário e apaixonado. Os devotos
do falecido, os amigos dos entes queridos, os conhecidos, os admiradores, e até
os curiosos expressaram seus sentimentos condoídos. O enterro de pai foi no dia
13 de junho de 2007. Devoto de Santo Antonio, já eram muitas as coincidências. Aos
13 dias nasceu (13.12.25), às treze horas faleceu e aos treze seria enterrado. Naquela
procissão a grande maioria do clero e do povo entoava cânticos que o bispo
diocesano executava, intercalado pela Lira Nossa Senhor Imperatriz dos Campos e
pela reza do Terço. Meu pai teve missa de corpo presente, presidida pelo bispo
e concelebrada pelo clero. Ainda pude proclamar seu nome no ‘memento dos mortos’.
Mas, confesso, não me entendam mal, é uma liturgia que não se almeja celebrar.
Mais duas
cenas jamais esquecerei: Quando chegávamos ao cemitério um serviço de som se
aproximava sem diminuir o volume. Já me constrangia, até que atinei para a
música: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te
esquecer. Você só me ensinou a te querer e te querendo vou tentando te
encontrar. Vou me perdendo, buscando em outros braços seus abraços, perdido no
vazio de outros passos, do abismo em que você se retirou e me atirou e me
deixou aqui sozinho.” Desde então é impossível ouvir essa música, de Fernando
Mendes, sem lembrar de Pai. Naquela hora já me convencia de que aquele enterro
era um ato de amor.
A
segunda cena se dá quando o caixão é descido os sete palmos. Minha mãe
interrompe a primeira pá de areia molhada dos respingos daquela manhã, já quase
ao meio dia, e rompe os suspiros dos choros com uma fala de lembrança
apaixonada: “Você sempre me ofereceu flores no dia dos namorados, mas ontem
você não teve tempo, hoje sou eu quem lhe ofereço.” E lançou suas flores sobre
o caixão. Gesto seguido por todos os presentes, num momento em que apenas se
ouvia o cair delas sobre ele. Meu pai e suas flores foram cobertos com a areia
do cemitério e regados com as últimas chuvas do outono tobiense.
Passei o dia de hoje assim. Lembro de
tantas exéquias que presidi, de famílias que visitei nessa hora dolorosa e das
palavras que, ousadamente, quis dizer para ajudar a manter todos conscientes de
que a dor não pode deixar casa gesto, cada sinal, sem sentido. Tudo fala na
hora da morte, o silêncio mais eloquente dos presentes, o sentido mais nobre de
seus gestos e as palavras mais memoráveis daqueles que nos deixam. “Descanso eterno
dai-lhes, Senhor!”
Eu me senti outra pessoa depois que
perdi meu pai. Entendi que sua morte me fez mais humano, mais família e mais maduro.
Finalmente seus ensinamentos se tornaram mais vivos do que quando ele nos
repetia incansavelmente as mesmas coisas. Hoje o amo mais do que antes, ao
menos tomei consciência disto. Sinto-me guardião de sua memória. Quis compartilhar
com você, caro leitor, esta página da minha vida tão cara, porque sei que tudo
isto que experimentei me fez ver a morte de outra maneira e me fez aprofundar
ainda mais a Paixão de Cristo e a minha. A morte não é a última fase da vida. As
pessoas, quando nos deixam com amor, ficam ainda mais presentes, por que sempre
foram presentes e vivas dentro de nós.
Desejo uma vida apaixonada e no fim
dela uma morte santa. Ame e reze por mim!
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
25.03.2016
Pe.
Adeilton Santana Nogueira