domingo, 28 de fevereiro de 2016

FIGUEIRAS INÚTEIS

Lc 13, 1 – 9
3º Domingo da Quaresma – Ano C

Em uma sequência de cinco semanas estamos no meio do caminho. A terceira semana da Quaresma completará a metade do percurso da viagem de Jesus a Jerusalém, nos capítulos de nove a dezenove do evangelho de S. Lucas. Se tomarmos esses textos como a catequese de preparação para Si e para os discípulos, veremos que cada aula é uma etapa da vida cristã, que precisa ser bem vivida e assumida. Esta de hoje ascende ainda mais as duas primeiras.

Depois de vencer as tentações e a escalada da montanha da espiritualidade, ninguém pense que a primeira seja a segunda. Ser tentado e não cair não é, necessariamente, uma escalada espiritual, ainda que o diabo tenha levado a lugares altos. As tentações podem ser vencidas por outros valores que não sejam espirituais, como os morais, profissionais, índole pessoal ou mesmo a diversidade de gostos e saberes. Mas, a lição de hoje, se vista como uma etapa que exige as anteriores, ganha um sentido ainda maior que não pecar e do que rezar, a saber, não se considerar, por isso, melhor do que os outros.

1 Vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam. 2 Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? 3 Eu vos digo que não. Mas, se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo.”

A questão não é não pecar ou pertencer a essa ou aquela região, família ou tradição religiosa, mas converter-se. A conversão é o grande tema da religiosidade que valida qualquer testemunho pessoal e espiritualidade. Não somos abençoados porque nada de mal nos ocorre. Se fosse assim as maldades e desgraças que assolaram a vida de Jesus atestariam que ele era grande pecador. Ele já começa a preparar os seus seguidores a abandonarem essa visão preconceituosa da religião dos prazeres, onde se busca satisfações e bem estar, que faz do religioso uma pessoa blindada de desgraças.

Chama-se teologia da retribuição, essa mentalidade difundida desde o primeiro Testamento, mas comum mesmo entre os descrentes, a ideia de que tudo tem que dar certo e estar tranquilo, sem problemas, para que nos sintamos em paz e testifique que agradamos a Deus. Essa teoria da passividade, em ser digno de receber méritos, não condiz com a prática dAquele que carregou sobre si as nossas dores e fez-se pecado para aliviar a culpa de Seus semelhantes. Se graça é não aparentar maldição, que foi fazer Jesus no alto da cruz?

4 “E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? 5 Eu vos digo que não. Mas, se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.

A injustiça política de Israel tocou a religião de Jesus. Talvez nem fosse o ensinamento oficial dos anciãos. No entanto, era uma mentalidade corrente cujas autoridades religiosas não se preocuparam em reorientar. Há diversas ideias soltas na fé que não condizem com a própria doutrina. Maus ensinamentos dados a esmo, por quem, talvez, nunca leu o seu livro sagrado inteiro e, portanto, também não entendem direito, e repassam como verdade. Assim como a fofoca e a mentira, a falsa doutrina também se avoluma entre os fieis. Tais enganos se cristalizam na pastoral, na catequese, na família e na sociedade como uma erva daninha ramificada. Carecemos de semeadores e pescadores tanto quanto de guias. Não raro os guias fazem vista grossa e todos caem no mesmo abismo.

6 E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. 7 Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos e não encontro. Corta-a! porque está ela inutilizando a terra?

Esta é uma das figuras comparativas à nação. O povo conhecia esta alegoria de Israel também como árvore frutífera. Todavia, esta figueira não dá figos desde que foi plantada. A reação do dono poderia parecer radical ao leitor que vê de fora. Apesar disso, acredito que também o leitor, grosso modo, cobre o que espera dos outros, desista do que lhe atrapalha e troque de opções por resultados melhores. Afinal, quem insistiria no que não presta?

8 Ele, porém, respondeu: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. 9 Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás’ ”.

Eis o papel das igrejas e das religiões enquanto instituição: insistir na conversão da mentalidade; cavar, adubar e esperar. Dar fruto é uma decisão ou natureza da figueira. O papel do vinhateiro é dar as condições para que a planta germine e frutifique, ainda que seja uma figueira inútil. Sem essa cooperação do dono do terreno, dos vinhateiros e arrendatários não seria possível a nenhuma planta seguir suas determinações ou o prazo da colheita, senão o próprio da sua natureza selvagem, oportuno do tempo e das estações. Se quisermos orientar alguém é necessário que pastores arrebanhem, pescadores se atirem ao mar e semeadores rasguem a terra; do contrário não culpem o rebanho, nem os peixes, nem as sementes.

Há de se saber também que é próprio da figueira dar figos; eis a contrariedade do vinhateiro, pois era uma vinha com figueira no meio. Aquele fruteiro estava ali em favor da esperança de que agradasse o dono. Nem mesmo na natureza as coisas são despropositadas. Por isso este senhor vai acreditar de novo; para que não lhe recaia a decisão na pressa dos resultados, no engano das aparências, na fome do momento, nem no orgulho do poder. Assim poderia perder a melhor ou a única figueira de seu terreno, ou ainda, como diria Henfil, ignorar a intenção da semente. Afinal, quem é que sabe ao certo quanto tempo se deva esperar por frutos?

Ainda me pergunto de quem é mesmo a responsabilidade de julgar e sentenciar ao corte radical figueiras que não dão o fruto esperado; e se não é, justamente o contrário, o sentido da religião, religar as coisas e as pessoas, conectá-las, unir as pontas rompidas, como na pintura A Criação de Adão, de Michelangelo, na Capela Sistina. Apesar de não se saber ao certo se ali a mão de Deus e a de Adão se aproximam ou se afastam.

Desejo a você uma vida misericordiosa, na qual se dê a chance às ‘figueiras inúteis’ de darem fruto no seu tempo. Boa semana e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
28.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 27 de fevereiro de 2016

UMA GUINADA, UP, NA FÉ

Lc 9, 28b – 36
2º Domingo da Quaresma Ano C

Depois do deserto a montanha, depois das tentações a escalada, depois do sol escaldante a falta de ar e o vento gélido, depois da provação a oração. Ledo engano para quem acha que se reza primeiro e depois enfrenta a tribulação, pois esta se enfrenta ‘em’ oração. Jesus nos ensina que a oração não é uma etapa na vida espiritual, mas a própria vida espiritual, o seu cotidiano.

28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar.

A prática da vida de oração, ou melhor, deveria dizer a vida de oração, uma vez que dizer-se ‘de oração’, sem a prática de orar ou rezar, perderia o sentido. Isto é a vida de qualquer pessoa espiritual: conversar com Deus. Pois se algumas vezes nos pegamos conversando sozinhos, com nossos botões, como poderíamos viver sem elevar ainda mais alto o nosso pensamento e até mesmo silenciar para ouvi-los? Subir ‘acompanhado’ já indica que subir sozinho era uma tarefa que o próprio Jesus não preferia. A montanha, por sua vez, é um sinal antigo de encontro com aquele que é superior a tudo, o totalmente outro. Como disse Dante Alighiere, no canto do Purgatório, o qual compara com uma montanha, na sua escalada, o cansaço é o que menos se sente quanto mais se sobe; assim poderíamos definir também a vida espiritual.

29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.

É sempre curiosa a sensação de felicidade e segurança que transparece no rosto de quem faz uma experiência de satisfação. Tal pessoa não se nega nas aparências de que está bem, pois o seu coração e consciência, de fato, estão bem. Deixo ao leitor, em sua mais íntima meditação, a possibilidade de nos dizer o que seria esta roupagem alva e resplandecente da qual Jesus se revestiu e muitos de nós não conseguem esconder, quando transbordam de felicidade.

30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias.

São os homens das montanhas. Aqueles que as frequentavam com assiduidade. Não é de se admirar que haja pessoas de oração onde se costumam rezar. A admiração seria o contrário, se não houvesse pessoas de oração nos lugares onde se vai rezar. Todavia, não se admire se eu disser que aquele monte, Tabor segundo a tradição, já era frequentado por não cristãos. Mesmo em Israel, não há tantas montanhas, nem tão altas, como se vê igrejas em cada esquina de nossas cidades. Lugares assim não eram exclusivos. Contava o guia turístico do local que, segundo uma antiga tradição, uma deusa pagã era cultuada lá em cima, além do que, outros judeus também se reuniam para cultos não ortodoxos. Assim, podemos entender que Jesus se mistura aos que buscam Deus além de uma religião que se perdeu na razão de suas leis.

31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém.

A conversa é essa: sofrimento e morte. Mas quando diz ‘sobre a morte’ dá a entender também sobre que tipo de morte, e aí podemos pensar em todas as situações que envolveram a morte de Jesus, sobretudo aquelas ligadas à história de cada um desses que vieram para partilhar esse assunto. Uma conversa que nenhum de nós, vivos, gosta de ter; logo alguém diria: “Vire essa boca para lá!” Também acho de extrema dureza que se tenha de falar de assuntos que nos matam e do quanto nos querem mortos, como aquele sacerdote vai dizer: “Convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação.” (Jo 11, 50) Não é por menos que Jesus não quisesse continuar em uma religião que sacrifica uma pessoa para se proteger perante a sociedade e agradar aos seus membros, sem se preocupar com a verdade de fato, ainda que defendendo suas leis.

32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.

O sono de Pedro e dos companheiros é recorrente. Às vezes me pergunto, por que os evangelistas insistiam em dizer que os apóstolos e discípulos tiravam os seus cochilos em horas cruciais, se não seria um índice e um alerta para a igreja nascente, dos primeiros cristãos, de que o peso do sono fecharia os olhos daqueles “ocupados em nada fazer” (2 Ts 3, 11), mesmo sendo as pessoas mais destacadas da comunidade, que só acordariam depois, no final da cena, quando já não pudessem fazer mais nada; além de perderem o fio da ninhada. Quantos detalhes não se perderam daquela conversa! Talvez eles não devessem mesmo saber tudo o que se passou no Tabor, nem no Getsemani (Lc 22, 45s).

33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.

Quem de nós diria ao príncipe da Igreja que ele não sabia o que estava dizendo? Só mais tarde a história poderia confirmar ou nos dar autoridade, como deu esta certeza ao evangelista Lucas. Também não é por menos que alguns Papas tiveram a hombridade de reconhecer o engano dos seus predecessores, portanto, que não sabiam o que estavam dizendo, quando disseram algumas coisas sobre ciência e até religião. Sei que é uma situação extremamente delicada essa de se desculpar depois. Passam anos e, em certos casos, nem se pede perdão a quem foi ‘enganado’. O tempo passa e com ele as suas ideias também. O que nos garante que no futuro pedirão perdão pelos enganos de hoje. Quem de nós diria aos homens de Igreja em que eles já não sabem o que estão dizendo?

34 Ele ainda estava falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem.

Veja se esta narração não lembra a Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria, mas, sobretudo, a nuvem que preenche a Tenda da Reunião, que Moisés não podia entrar. (Ex 40, 34s) Naturalmente o leitor já identificou essa sombra com a presença do Espírito Santo. Atine também para este clima maravilhoso que traz a vida no espírito e que exige uma iniciativa redundante e corajosa do fiel de ‘entrar dentro’, entrar mesmo, não beirar ou assistir de fora, como fazem muitos que se dizem cristãos e Moisés que ficou de fora. Existe outra atitude que definirá o orante nesta cena, o medo, melhor, a coragem de permanecer dentro, mesmo na penumbra. Quantas vezes encerramos nosso ‘êxtase’ espiritual por causa do tempo ou covardia do confronto, quando o assunto começou a revelar as consciências. Sim, entrar nesta nuvem faz medo.

35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”

O medo é algo natural a todos nós. Deus também nos dá incertezas. Nem tudo está claro e definido na nuvem do Tabor. Até o brilhantismo dos profetas e a segurança da lei, segurança de muitos, perdem sua nitidez para dar lugar ao que a voz dizia: Escutar Jesus! Não há aqui outro ensinamento ou conselho que nos guie na vida, pois há escuridão mesmo entre os espirituais, e não se deve deixar o medo guiar a vida de quem reza. Escutar Jesus é o ensinamento mais básico do cristianismo e ao mesmo tempo a guinada, o up (inglês = para cima) da fé, o diferencial, aquilo que se deixa de fazer no fracasso da espiritualidade.

36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.

Agora entendemos por que Pedro não sabia o que estava dizendo. Não era para ficar em tendas na montanha. Ali não era o objetivo da missão e do ensinamento de Jesus. Embora fosse bom ficar na glória dos profetas e no mérito da Lei, Jesus reservava outra revelação que carecia de um ingresso muito íntimo no profundo deles mesmos, ainda que com medo, a fim de serem, também eles ungidos pela sombra do Espírito, tocados pelo seu mistério e encontrassem a certeza que os faria atravessar o vale tenebroso da sombra da morte (Sl 22, 4).

Este segundo domingo da quaresma, segundo o evangelho de S. Lucas, traz um convite ainda mais corajoso que a luta travada contra as tentações, a saber, ir além das aparências da religião de satisfação. Jesus está a caminho de Jerusalém e sabe que enfrentará as autoridades constituídas de seu povo. Sabe, porém, o que eles não sabem: Sabe a quem serve e para que veio. Já aquelas autoridades não sabem mais a quem servem e há muito trocaram a sua fé pela cumplicidade política entre religião e império romano. Não entendo como aquela fé não pode apresentar ao mundo um ensinamento novo e foi se tomando do medo de ser diferente, de sair das nuvens e descer do alto das montanhas.

A postura mais cômoda para qualquer estadista é mesmo atrelar o seu vagão em outro e não arcar com o peso de puxar o trem ou remar contra a maré. Não precisamos de rebeldes sem causa ou profetas sem convicção; precisamos de Jesus e de pessoas que hajam como se fossem Ele. Creio que isto basta para definir a espiritualidade de alguém, se diz e faz o que Jesus diria e faria se estivesse em seu lugar. Já imaginou se olhássemos para as pessoas nos perguntando se Jesus faria assim? Já se imaginou se perguntando se Jesus teria feito o que você fez e disse?

Desejo a você uma Quaresma de jejum, esmola e oração. Faça de Jesus o seu espelho e veja se é Ele quem você vê quando se olha nele. Boa semana e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
21.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

05. A EXISTÊNCIA EM HEIDEGGER

Agora não está tão difícil de compreender o que significa a existência para o nosso filósofo. A existência não é apenas a faculdade racional de perceber-se, de tomar consciência de que e de quem é, mas diz respeito à própria essência humana. Vale repetir o que dissemos acima: ‘Ser-Aí se torna existir’. O homem se define a si mesmo enquanto faz a experiência do conhecimento dos seres. ‘Existir é interpretar o mundo e a si mesmo’.

Todavia, Heidegger ainda nos dá uma boa definição ao conceito de existência na introdução à sua preleção Que é metafísica? (1929), quando diz: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (p. 59). Ao que continua a seguir: “Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A arvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe”. Considere o leitor os conceitos anteriores de Ser e Ente, sobretudo Dasein. Se o homem é o Ser-Aí, definindo e dando sentido a todos os entes, como dissemos, ‘Ser é a busca incessante do conhecimento’. Esta é a sua abertura e a sua aventura, a própria definição de sua existência e da existência em si.
  
Segundo o nosso pensador, a frase: “o homem existe” não quer dizer que só ele seja um ente real e que os demais sejam irreais. Significa, porém, que o homem é aquele cujo ser é marcado pela in + sistência e pela ex + sistência, na manifestação e desenvolvimento mais íntimo e mais externo do ser, a partir do ser (para fora = ex) e no ser (para dentro = in). De fato, vejamos se a real existência do homem, além de ser aquele que dá sentido a tudo, esta mesma descoberta, não o define interiormente e o faz ser quem ele é. Vejamos se a existência do homem não é mesmo uma ‘insistência’, e sua abertura, ao que está fora dele, uma aventura de idas e vindas na própria e contínua resignificação da vida e de sua vida. O que você acha que seja a existir, então?

Dizendo assim parece que estamos nos referindo à existência mais autêntica, e estamos, visto que o Dasein tem a sua interpretação própria, logo, autêntica. Entretanto, partindo da compreensão do ser que define a existência, façamos justiça, em considerar com o autor, que esta existência é, na maior parte das vezes uma ‘existência inautêntica’, que em sua língua se diria uneigentlich (un + eigentich = não autêntico; não verdadeiro, não real, não original).

Quando pensamos que já entendemos, outro conceito nos desestabiliza. Precisamos aprender mais com Martin. Até agora estamos gostando de definir nossa existência e Ser-Aí. Mas, quem suporta descobrir que na maioria das vezes sua existência não é autêntica? Calma leitor, não se ofenda, já vamos explicar!

Do mesmo modo em que só o Dasein é autêntico, porque só ele pode interpretar a existência,  assim também somente ele pode ser inautêntico e perder-se nessa compreensão de si, pois essa interpretação sempre será pessoal, sua, única. Mesmo as medidas da física, como espaço e temporalidade dependem do Dasein e a ele estão condicionadas. O erro e o engano, durante a existência ou no momento presente, dependem única e exclusivamente de um Dasein que é sempre meu, exclusivamente seu. Não parece, então, que seja sem grandes consequências ser a medida de todas as coisas! Se as interpretações são pessoais, as suas incompreensões também o serão.

O ser humano, em seu cotidiano, pode manter-se numa situação de encobrimento de seu ser e possuir uma interpretação errônea de sua própria existência, que se mantém para ele encoberta, seja na juventude ou na vida adulta; ele pode perder-se e encontrar-se novamente, e voltar a perder-se. Pode até perder-se na ocupação, naquilo que faz, e tornar-se isso ou aquilo. Não se perde como se perdem as coisas. Contenta-se como um SER-SIMPLESMENTE-DADO. Não um Ser-Aí, mas um ser colocado aí. Perde-se em suas preocupações. Perde-se quando deixa de se importar consigo mesmo e deixa de cuidar-se. O bom da história é que o Dasein nunca deixa de  ser e de falar de seu ‘eu’, portanto nunca é completamente inautêntico, senão deixaria de ser Dasein.

Vê-se que a inautenticidade do Dasein está ligada a um processo de impessoalidade. Quanto mais o Dasein for definido pelo mundo menos autêntico ele será. Para Heidegger autêntico é poder ser-si-mesmo. Ser autêntico é fazer as suas próprias coisas e não o que o impessoal determina. Cuide-se de examinar se o ser autêntico está na origem de sua compreensão e de sua existência ou se vai se perdendo entre um ente e outro ou o fazer uma coisa e outra. Há de se cuidar também da condição de indiferença, onde o Ser-Aí nem é autêntico nem inautêntico, nem faz por si nem pelos outros, simplesmente não é aí. Vive como se não fosse nem estivesse. Bem que poderíamos nos perguntar que tipo de ser eu sou?

Heidegger lembra que todo Da + Sein (Ser + Aí – pré + sença – pré + sente) tem uma tendência a autenticidade, a "voz do amigo interior". O ser humano que vive em constante perigo de perda de si tem o seu si mesmo no desdobramento da propriedade de sua essência. O filósofo alerta que ao longo da história assistimos à perda da reflexão do ser enquanto tal, colocada pela primeira vez no mundo pelos primeiros filósofos gregos, mas esquecida pela tradição. A tarefa do nosso pensador e da sua analítica existencial é a destruição dessa tradição e mostrar como no dia a dia da existência, do homem do século XX, domina amplamente um esquecimento do ser.

Ser aí ou ter sido colocado aí? Ser autêntico, enquanto é consciente e age por si mesmo, sendo presença significante aí onde está ou ser inautêntico, perdido nas mesmices externas e funcionais do cotidiano. Mesmo assim, ainda há outra forma de ser: a indiferença. Nem se apropria nem é propriedade de outrem, um vagante no seu des + vio. Que coisa é o ser? Assim começou a filosofia entre os gregos, assim se define a existência do ser mais excelente: o ser humano.

16.02.16
Adeilton Santana Nogueira

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O CORINGA DO DIABO

Lc 4, 1 – 13
1º Domingo da Quaresma Ano C

O evangelho desta vez traz um encontro de Jesus com o diabo, em diálogo brando e cheio de citações bíblicas, poderia se passar por uma conversa entre religiosos, se não considerássemos a intenção diabólica de usar da bíblia para enganar quem a segue, usando-a em benefício próprio.

Outro grande engano do diabo é considerar apenas a humanidade de Jesus e tentá-Lo sob as fraquezas da humanidade. Não apenas a fome, mas a saciedade, não ter necessidade que não seja suprida; não apenas o poder sobre as coisas, mas a glória das pessoas e seu reconhecimento; não apenas a fé, mas tomar o lugar de Deus nas suas decisões.

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. 2 Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome.

A tradição mais comum costuma localizar as tentações de Jesus durante os quarenta dias no deserto e apenas essas três. Não ignore o leitor que Bíblia não é jornal, portanto, não está preocupada em relatar as coisas tal como ocorreram ou contar as suas histórias. Não estranhe essa afirmação e lembre que Bíblia é um livro de espiritualidade; está repleta da sabedoria de Deus que é loucura para os homens. Os números, as localizações geográficas, os personagens, todos apontam para a fé de Israel e dos cristãos; vale procurar as cenas da fé que se repetem em Jesus.

Quarenta anos e quarenta noites passou Noé e sua família dentro de uma barca, enquanto o mundo era lavado pelo dilúvio (Gn 7, 4. 12). Quarenta dias e quarenta noites duraram o jejum de Moisés, quando recebeu os 10 mandamentos (Ex 34, 28) e de Elias, quando precisou subir a montanha de Deus para rezar (I Rs 19, 8); além dos quarenta anos da travessia do povo de Israel no deserto (Nm 14, 33), antes de encontrarem a terra prometida e a purificação das influências egípcias.

3 O diabo disse, então a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. 4 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’ ”.

A tentação vem no momento de fraqueza do corpo, não do espírito. Sentimentos e emoções titubeiam a mente e podem levar à desistência da missão profética. Na tristeza das perseguições e no primeiro dia de deserto, o cansaço e a fome adormecem o profeta Elias que se deitara para morrer (I Rs 19, 4). Elias é servido pelo anjo, mas Jesus é tentado ainda mais.

O pão é o maior dilema material da humanidade. Toda a nossa existência quase se resume em ter o que comer. A base da produção, da subsistência, da vida familiar é ter o alimento; disto depende o trabalho e a saúde. Até o romantismo precisa de uma mesa sedutora. O escândalo da fome é uma tentação diabólica, talvez o maior motivo da corrupção do homem. A tentação original se dá na oferta do fruto proibido (Gn 3). Parece que ter o que comer é muito mais do que alimentar-se e esconde a maldição de comer do próprio suor (Gn 3, 19).

Quando Jesus diz que “Não só de pão vive o homem”, talvez quisesse dizer que não se faça do comer, nem por gula, motivo para pecar, por usura ou ganância. A saciedade insaciável é querer ter cada vez mais, a ponto de encontrar nas posses materiais a definição da existência. O ‘ter’ se põe no lugar do ‘ser’. Possuir bens passa a ser a maior vantagem da pessoa, a sua seguridade. Confia não em si, nem nos seus, mas no quanto tem. Há pessoas que não se contentam em precisar de algo ou alguém e não estar à mão. Suas carências são insaciáveis e sufocantes a si mesmas e tantos quantos se lhe aproximem. A tentação das posses é um abismo de acúmulos tão diabólico que, ao seu menor presságio, Jesus o renega. Antes a fome a ter o que não é Seu. De fato, comem pedras os insaciáveis que se alimentam de tudo o que veem à sua volta.

4 O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem quiser. 7 Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”.

Já é sabido que um por cento dos oito bilhões de habitantes do planeta detém a mesma riqueza dos noventa e nove restantes. Outra pesquisa aponta sessenta e sete pessoas com noventa e nove por cento da riqueza de humanidade e apenas um por cento restante é que fica dividido entre os demais oito bilhões. Contudo, esta riqueza vira miséria nas mãos de tanta gente e riqueza mesmo apenas naqueles míseros um por cento. Poder, influência, reconhecimento é o que muitos buscam sob o véu do progresso e do sucesso na vida. A quem pertencem essas forças? O diabo se declara o seu dono quem a distribui ao seu bel prazer. Se estas coisas vêm realmente do diabo, quem ainda as quer? Acredito que o leitor já começa a se questionar se suas atitudes são decisões próprias ou tentações diabólicas.

8 Jesus respondeu: “A Escritura diz:
‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele só a ele servirás’ ”.

Ter em si mesmo o seu maior ídolo; ufanar-se em se achar o melhor ou que seu sucesso depende de suas próprias posses e inteligência; achar-se melhor favorecido do que o seu vizinho, como se você fosse de uma linhagem ou matéria de melhor qualidade, talvez seja uma das tentações de adorar ídolos ou de se fazer objeto de adoração de outrem. Quantos querem ser modelo de alguma coisa e ter seu nome lembrado? Alguns se acham tão essenciais que não admitem ser deixados de lado nem nas mínimas coisas. Outros foram tratados assim e se acostumaram em ser venerados.

9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: “Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ 11 E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’ ”.

Sempre me intrigou essa tentação! A ousadia do diabo foi tamanha que arriscou confundir Jesus na casa de Seu Pai. Para mim essa é a tentação da religião, a mais grave e perigosa para qualquer religioso. “Pobres sempre tereis” (Jo 12, 8) e “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), são frases de Jesus que justificam a condição terrena e efêmera desses pecados. Todavia, a tentação no Templo, sobre a proximidade a Deus, demonstra uma situação deveras delicada.

Existe a possibilidade de tentar Deus. Jesus já estava sendo tentado, mas tentar Deus era o coringa do baralho do diabo, quando ousa enganar Jesus. O diabo tem uma meta. Ele não quer apenas nos tentar, mas nos quer levar a tentar Deus. Por algum motivo ele não pode chegar ao Pai com suas armadilhas e, por isso, engana a humanidade a tentar que Deus faça algo por nós por causa de suas seduções. Ele, o diabo, pretende duas coisas: ser o autor primeiro de alguma atitude de Deus em relação aos homens e induzi-Lo ao erro.

Vê-se quão diabólica é a atitude de quem manipula Deus ou ao menos o bota de frente para mascarar as próprias atitudes. A ‘vontade de Deus’ e a ‘palavra de Deus’ se transformam em capricho de poucos e voz ou assinatura de menos ainda.

12 Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’ ”.

O que mais lamento em algumas igrejas é a capacidade de fazer de Deus o seu boneco, enquanto ela é seu ventríloquo. Numa tal igreja os fiéis viram fantoches e marionetes no grande palco das naves dos templos, onde os artistas dissimulam de suas tribunas e presbitérios. O espetaculoso do diabo nesse evangelho consegue misturar deserto com montanha, reinos e templo, e reunir uma panorâmica de desolação, fausto e religião, ao mesmo tempo. Usar da religião ou de Deus para a promoção pessoal é o pior de todos os estrelismos, pois além de medíocre, da areia ao céu, é grave o pecado de fazer de Deus um fetiche.

13 Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.

Depois de vermos essa disputa ideológica, maliciosa e maquiavélica, podemos entender que se tratava de uma guerra de intenções, onde o diabo escondia sua última cartada. Jesus não precisou de artimanhas para fazê-lo sair de sua vida. Apesar da fome, da pobreza e da aridez, o coração de Jesus não se deixou vender benefícios e privilégios. Em religião não se negociam vantagens. Acho que poderíamos dizer ao diabo, iluminados por este evangelho: Você pode até me tentar ou ameaçar, mas jamais terá o meu coração e as minhas atitudes.

Desejo uma Quaresma piedosa, sem fantasias. Que nosso jejum, esmola e oração não virem simbolismo vazio, artífice dos homens e drible do diabo. Que nossa Via Sacra trilhe as ruas de Jesus, ainda não saneadas.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
14.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 6 de fevereiro de 2016

REDES SUJAS E RASGADAS

Lucas 5, 1 – 11
5º Domingo Comum B

Desta vez peço ao leitor um exercício de memória e imaginação. Vale ler o evangelho que segue inteiro e tentar criar em sua mente a cena descrita pelo evangelista Lucas. Tente se lembrar do mar que você conhece, tente imaginar Jesus sentado na barca e, quem sabe, ouvir a Sua voz. Imagine a emoção e espanto das pessoas em ver a fartura de peixes, que era o alimento e ganha pão da maioria em torno do lago.

1 Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a palavra de Deus. 2 Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. 3 Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava à multidões. 4 Quando acabou de falar, disse a Simão: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”. 5 Simão respondeu: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”. 6 Assim fizeram, e apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. 7 Então fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajudá-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem.

Uma vez eu proclamava este evangelho, celebrando em uma escola do interior, e uma senhora me surpreendeu exclamando: “Ô mentira!” Ela se admirava de que tivessem pescado tanto a ponto de se romperem as redes que não segurou sua espontaneidade. De fato, se a pessoa pensar bem, ela pode ser tomada daquele choque que levou Pedro ao espanto.

8 Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!” É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer. 10 Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados. Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens”. 11 Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus.

O que se descortina aos nossos olhos, na experiência da fé, é mesmo surpreendente, mesmo que nem todos o experimentem. Porém, o que vai demonstrar a verdade e validade desse assombro não é o espetaculoso, nem a reação do momento, mas o que vem depois. Pedro reconhece que aquilo não é para ele e Jesus, mesmo assim, dá uma nova missão. Jesus é aquele que confia em incapazes; confia em nós mais do que nós mesmos.

Poderia parar esta reflexão por aqui, mas trairia o leitor que prefere meditar mais os versos com nossas aplicações existenciais e de leitura das nossas atitudes religiosas, iluminados pelo texto. Então, continuemos a partir de um retorno.

A multidão se comprimia em pleno sol da manhã, talvez também os que vieram comprar peixes e não acharam. As nossas assembleias cristãs não lotam no fracasso do que procuram. Mas aquelas pessoas do evangelho se comprimiam “para ouvir a palavra de Deus”. As duas barcas à margem já foram interpretadas de muitas formas. Virou uma alegoria das duas grandes tradições cristãs: a romana e a oriental. Mas há quem veja uma suposição de que Jesus admitisse barcas auxiliares à de Pedro e não uma numeração limitada em duas. Todavia, ambas tripulações fracassaram naquela pescaria e já lavavam as suas redes.

Jesus sobe primeiro na barca do líder, Pedro. É de lá que ele prega. Não sabemos se este era um costume rabínico, uma invenção de Jesus, já uma referência à cátedra de Pedro ou um novo sentido para aquela pescaria. Fato é que Jesus pregava ao vento e o vento soprava aos ouvintes. Mar e vento ecoavam a voz do Verbo que se fez carne (Jo 1, 14). E somente depois que pregou é que mandou. Antes o conteúdo, depois a obra. Primeiro a forma e depois a matéria, o sentido e a ação. Ninguém pense em fazer o contrário, em fazer e depois procurar o sentido.

Depois de uma pescaria, noite adentro, com toda a técnica dos práticos no ofício, Jesus aponta para uma realidade que, ao menos na sua religião, não funciona: fazer sem Ele. Assim o que vem antes dEle fracassou porque não considerou a palavra de Deus. A novidade da Sua palavra está na novidade da Sua aliança. A Sua aliança é uma aliança com Ele. Como a de Israel era com Deus. Não são as redes, nem a barca, nem os pescadores, mas Jesus, assim como Deus, quem garante o sucesso da noite fatídica. Toda vez que Israel colocou a sua segurança na Arca, no Rei ou no Templo, fracassou. A aliança não é com os sinais, mas com o Senhor.

Avançar para águas mais profundas e lançar as redes para a pesca tem um sentido múltiplo para todos nós. Quer dizer muita coisa. Avançar e lançar são atitudes de caçador, de quem procura algo com afinco, uma presa talvez, algo que está à frente e precisa ser surpreendido e capturado. Empreender, ir atrás, sair do marasmo, da tristeza, do medo daquilo que não deu certo. Medo de não conseguir de novo, ainda que haja argumentos fortes, como os de Pedro e sua equipe: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”.

Acredito que se cada um pudesse falar teria inúmeras lamúrias para explicar o próprio fracasso. Eu tenho diversos argumentos que fariam qualquer um desistir de pescar. É este “mas” de Pedro que nos interpela: “Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”. Não fosse “em atenção” à palavra de Jesus poderíamos terminar de lavar as redes e guardá-las para outro dia. É “em atenção à tua palavra” que inicia outro desfecho para esta história e, quiçá, para a nossa.

Do fracasso à fartura. Essa é a promessa e a esperança. O que separa o sucesso do fracasso é a atenção à palavra de Jesus, um vetor que muda o resultado. Tudo naquele cenário era igual, mas já começou a mudar quando um carpinteiro decide semear palavras para colher pescadores. A propósito, eram duas barcas, Jesus estava na de Pedro, e Pedro volta a pescar, só depois chamam a outra barca. Jesus desceu e assistia da margem que se comprimia, já que Pedro volta e cai-lhe aos pés. Estas cenas cortadas fazem parte do making off que o leitor não pode deixar de criar em sua imaginação, para visualizar em sua oração toda a panorâmica daquela manhã venturosa.

A fartura daquela pesca parece apontar para um tema curioso e controverso na religião: a quantidade de fieis e o número dos eleitos. Apesar de as igrejas encherem em suas pescas esporádicas, quantos serão eleitos e salvos? Quantos peixes serão atirados ao mar de volta? Quantos ainda não estão maduros o suficiente para o comércio da fé, onde se troca pecado por graça?

As redes se rompem, chega outra barca, quase afundam; esta sequência dá uma ideia da abundância messiânica onde não há necessidades materiais que não sejam supridas com generosidade. Todavia religião não é comida nem bebida, muito menos fartura. Essas realidades sempre se confundem na prática pastoral. Até parece que a liturgia nunca deixou de ser o serviço da prefeitura pelo bem do povo. Isto está na origem da popularização dos bispos, quando levavam pão aos pobres em lugar dos políticos de sua época e assim tomaram seus lugares na bem querência dos pobres. Isto se confundiu muito na época e ainda causa confusão, já que a prática litúrgica e eclesial bate e volta nessas obras públicas. Todavia falta o pão mais precioso e as redes foram guardadas, rasgadas mesmo.

A palavra de Jesus, porém, a Simão e à sua equipe, não muda: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens”. Deixar de pescar para ficar remendando redes não parece ser a ordem de Jesus. Pescar com redes rasgadas não parece ser a prática de bons pescadores. Quanto peixe bom se solta em redes rasgadas! Não entendo pescadores que se entretém no hábito de costurar redes quando o mar pulula de cardumes. Não entendo pescadores que tem medo de nadar, caso a barca afunde. Não entendo pescadores que não pescam, sabotam os vizinhos e ainda exploram o ofício dos colegas. De pescadores passaram a atravessadores, e agora vivem do mercado de peixes, onde custam mais do que valem.

Quantas vocações já foram animadas por esta expressão: “Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus”. A minha também! Cada um deixa o tudo que tem. Não se trata de muito ou pouco, mas de tudo. Primeiro é preciso deixar as coisas como devem. As barcas não ficaram abandonadas à sorte do mar, mas na margem. Barcas antigas e sem uso, para que alguém ainda possa se servir delas. Nosso passado não é um desprezo. Tudo que somos hoje se deve ao que fizemos e fomos no passado. Essas coisas não se apagam, como às vezes gostaríamos. Ainda penso que tudo volta, seja resolvido ou não. Quase que somos prisioneiros do tempo ou prisioneiros de pessoas que ficaram presas no passado.

Não há radicalismo que deva ignorar as barcas na margem. Lembre que foi para elas que os discípulos de Emaus quiseram retornar, não fosse o reencontro com Jesus (Cf. Lc 21, 13 - 35). Quem pretende seguir Jesus, cuide de estacionar o seu carro, ancorar a sua barca e parar de fazer o que não condiz com a nova pescaria. Deixar tudo materialmente falando é fácil, mas tem coisas que vemos os novos pescadores carregarem que só espanta os peixes. Mas, como disse acima, o sucesso da pesca é de Jesus e, portanto, tem que saber dEle quando e onde se deve pescar, assim, mesmo redes sujas e rasgadas também pescarão.

Desejo que nesta semana, início da Quaresma, muitas barcas avancem, embora cansadas do fracasso, com redes sujas e rasgadas. Há muito peixe em águas profundas! Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
07.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

04. O SER-AÍ E SUAS INTERPRETAÇÕES


Entre interpretar e ser interpretado o homem trava uma disputa às vezes ingênua. Enquanto vive e olha à sua volta, serve-se apenas do que lhe interessa, sem se dar conta do mundo que o circula e de cumprir o seu papel mais notável, o de dar sentido a toda a existência, não apenas a sua. Mas, é a partir da sua existência, do ser aí no mundo, de sua relação com as coisas e com os demais seres, que se tornam existentes, à medida em que o Dasein se dá conta deles.

Ainda mais, toda disputa é ingênua. Esta tarefa de significação e interpretação, em nome do progresso, demonstra seu maior engano quando outros homens se antecipam a seus semelhantes e lhe significam a existência, antecipando-lhes teorias pré-fabricadas, as suas. São teóricos de plantão sem considerar a existência particular de cada Dasein que também significam e dão sentido ao que está à sua volta. Avio ao leitor que apesar de algumas vezes a filosofia parecer complexa, vale a leitura dessas linhas e o esmero paciente em reler o que não entendeu à primeira vista, para que sigamos numa melhor compreensão, inclusive do seu Ser-Aí onde você está.

Do que vimos nos artigos anteriores, cabe um alerta severo do nosso autor. Heidegger critica a filosofia tradicional, afirmado que seu fracasso consiste precisamente na canalização que esta faz da investigação do Ser para uma antropologia. Em vez de reconhecer o lugar do homem no mundo, a posição do homem como ser entre todos os seres, a filosofia tradicional converteu o mundo como algo que existe por e para nós. Um homem analisado e não um homem analítico. Um ser significado pelo seu contexto e não um ser significador. Um homem instrumento ou objeto e não um Ser. Um Ser que é lido como ente por uma ciência que converte em objeto de estudo aquele único que é capaz de estudar as ciências e os seres: o homem. O que você acha, ele deve ser compreendido pessoalmente ou segundo os outros homens?
“O processo do despontar da ‘antropologia’ não é visado aqui como a aparição de um determinado direcionamento e de uma determinada corrente na “historiologia” da “filosofia” e da “metafísica”, mas é conhecido como uma consequência em termos da história do ser do abandono do ser pelo ente”. (HEIDEGGER. Meditação. 2010, p.187)

Para o filósofo alemão, o Dasein não pode ser analisado simplesmente como um ente. Sua meta é ousada e desafiadora. Ele propõe o esquecimento do Ser enquanto concebido pela tradição filosófica ocidental e refaz as concepções dos primeiros filósofos na tentativa da descoberta do Ser. Para ele, os primeiros gregos produziam um conhecimento distinto do homem e do Ser. Platão confere ao ser um lugar no mundo das ideias e assim todos os demais filósofos vão se distanciando, segundo Heidegger, o sentido do ser.

Portanto, o tema do ser, no qual tem início a filosofia ocidental, tem de ser relido a partir desta perspectiva de uma ontologia fundamental, que busca a possibilidade de questionar o Ser, o Dasein, isentando-o de toda e qualquer particularidade, mas promovendo uma investigação dos entes como um todo.
“A investigação ontológica mesma, retamente compreendida, dá à pergunta pelo ser sua primazia ontológica, mas além da mera retomada de uma tradição venerável e do aprofundamento em um problema até agora escuro. Mas esta primazia na ordem objetivo-científica não é única”. (HEIDEGGER, Ser y Tiempo, p.187)

Sendo assim, vale frisar, que Heidegger levanta e mantém clara a distinção dos conceitos de ‘Ente’ e ‘Ser do Ente’, considerando este segundo como objeto da ontologia, enquanto o primeiro está sujeito às ciências ônticas. Para ele ontologia é o estudo que considera o ser que focaliza o ser do ente. Já ciência ôntica é consideração, teórica ou prática, do ente enquanto tal, na sua particularidade, sem levar em conta seu ser. Embora distintas, ambas são ângulos diversos de interpretação do Dasein: a ontologia deseja alcançar o significado do Ser, enquanto as ciências ônticas visam a descrição exterior das características do Dasein que o diferenciam de outras entidades. Contudo, há posteriormente um entrelaçamento de ambas.

Para Heidegger, não se pode limitar o pensamento sobre a essência humana a uma definição enfática do homem, mas reconhecer que o que o distingue é a sua relação com o Ser. Logo, o Dasein goza de privilégio em relação aos outros seres, pois lhe é possível questionar o Ser e compreendê-lo. Só o homem está apto para pensar o próprio ser e nos demais entes. Só ao Dasein é possível esta análise, pois só ele pode empreender este entendimento do ser:
“O Dasein não é tão somente um ente que se apresenta entre outros entes. O que o caracteriza onticamente é que este possui em seu ser este mesmo ser. A constituição do ser do Dasein implica então que o Dasein tem em seu ser uma relação de ser com seu ser. E isto significa, por sua vez, que o Dasein se compreende em seu ser de alguma maneira e com algum grau de explicitação. É próprio deste ente o que com e por seu ser este se encontre aberto para si mesmo. A compreensão do ser é, ela mesma, uma determinação do ser do Dasein.” (Ibidem)

O homem é o único Ser-aí, o Dasein. Ele existe imediatamente em um mundo, isto é, na realidade, na vivência cotidiana, em relação com os outros entes. O Ser-aí é o homem na sua realidade limitada e próxima, entregue ao seu destino:
“Este modo de ser é próprio do homem. A existência assim entendida não é apenas o fundamento da possibilidade da razão, “ratio”, mas a existência é aquilo em que a essência do homem conserva a origem de sua determinação. A existência somente se pode dizer da essência do homem, isto é, somente a partir do modo humano de “ser”; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabemos, nos limites da nossa experiência, está iniciado no destino da existência. (HEIDEGGER, Carta sobre humanismo. 1991, p.10)

Ser-Aí se torna existir. O homem se define a si mesmo enquanto experiência o conhecimento dos seres. Existir é interpretar o mundo e a si mesmo. A compreensão de Ser é a saída primordial da caixa preta em que o homem, desde sempre, é aprisionado pelos outros homens. O problema filosófico fundamental é a questão do Ser. O que são todas as coisas? Mesmo os primeiros filósofos se enganaram quando colocaram nas coisas a determinação do Ser. Engano porque eles é que diziam das coisas o que diziam que as coisas diziam. O Ser, ou melhor, Ser é a busca incessante do conhecimento. Esta é a aventura da existência, nosso próximo artigo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

03. O DASEIN E A INTERPRETAÇÃO PESSOAL


Já vimos no artigo anterior que Dasein é expressão alemã, em Heidegger, para designar o SER-AÍ, em sua existência e presença situada; um palavra-síntese que expressa a importância da existência como presença significante, percebida. A filosofia de Martin Heidegger pretende compreender o Ser e levantar-lhe questionamentos. Daí porque é tão importante preferir o conceito de Ser ao de Ente, em particular. O Ser-Aí (Dasein) tem a sua compreensão do Ser (Seinsverständnis) tão particular que será sempre sua (Jemeinigkeit). Vejamos então estes termos do vocabulário heidegueriano.

A COMPREENSÃO DO SER
Logo no começo de seu livro, Ser e Tempo, Heidegger se detém na questão do Ser, que se coloca àquele Ente privilegiado que é capaz de questionar o Ser. Cada Ser-Aí possui uma “compreensão do Ser”, que ele chama de Seinsverständnis. Heidegger apresenta este ente que pode compreender o Ser: o homem. Por isso o chama de "ser-aí" – Dasein – o homem enquanto um ente que existe imediatamente em um mundo e é capaz de entendê-lo e lhe dar sentido (§4).

Por meio do termo Dasein, que define o ponto de partida do seu modo de analisar a existência dos seres, o filósofo pretende ultrapassar a separação entre sujeito e objeto, que ele considera uma herança prejudicial da filosofia moderna, na compreensão do que ou quem seja o homem. Dasein é, portanto, o homem na medida em que existe na existência cotidiana, no dia-a-dia junto aos outros homens, em seus afazeres e preocupações.

Para entender o Dasein, o homem em sua presença, enquanto possui sempre uma compreensão de ser, impõe-se uma analítica existencial, que tem como tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein, a saber, os existenciais. Ser e existir vão se completando em sentidos que definem as pessoas e as coisas. Há um método que ajuda nessa tarefa de descoberta e interpretação: o método da analítica existencial. Ele é buscado tanto na fenomenologia, que analisa os fenômenos (as coisas enquanto acontecem), quanto na hermenêutica (que interpreta o sentido delas), de modo que este método se chama fenomenológico-hermenêutico (idem, §7). O ponto de partida é a própria manifestação do Dasein, ele mesmo em sua existência que, por sua vez, tem de ser interpretada de dentro para fora em suas principais estruturas ontológicas (ente e ser) que a definem e que permitem a colocação da questão do Ser.

A questão do Ser do Dasein é investigada tanto segundo a fenomenologia, do "ir às coisas nelas mesmas" [zu den Sachen selbst], a coisa enquanto tal, como se manifesta e se dá a conhecer, quanto na hermenêutica, da "interpretação no horizonte da compreensão", daquilo que se pode compreender.

Por meio da existência do homem, Heidegger apresenta uma abertura até o Ser e, para isso, recorre a uma linguagem nova. Dasein são duas palavras em uma: “da” que significa ‘aí’ + “sein” que significa ‘ser’, ou seja, a existência enquanto ‘ser que está aí’, sintetizado por SER-AÍ, entendido como presença situada. A pessoa quando sai da hipnose que o aliena e cega do mundo à sua volta e lhe faz agente, atuante e consciente, responsável pela significação das coisas.

Nesta investigação, segundo este método, a existência que se manifesta ao Dasein é sempre primeiramente ligada a ele mesmo, à sua compreensão que se coloca para o ser-aí antes de qualquer teorização. Heidegger nega a ideia de que, em filosofia, seja necessário estabelecer princípios como a base inabalável de um sistema filosófico. Ao contrário, ele está empenhado em pesquisar como ocorre a primeira e mais original compreensão do homem em sua existência mesma, antes das teorizações. A teoria sempre chega depois da consciência do homem e daquilo que se revelou ele na sua existência.

O SEMPRE MEU
A fidelidade à análise existencial tem de partir, do ser que é sempre dono de sua existência –Jemeinigkeit (“o sempre meu”), outra palavra original que designa aquilo que pertence apenas a si mesmo, e de não se acomodar previamente numa teoria que explique de fora o que é a existência humana. O ponto de partida, portanto, é duplo: tanto o ser-aí quanto a compreensão imediata que ele mesmo tem do ser em sua existência, as quais precedem toda a atividade científica e de saber.

Em suma, o Ser-Aí é imediatamente o homem e o mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita imediata, entregue ao seu destino. Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em um mundo de necessidades; pelo contrário, na medida em que compreende o Ser, o homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendência e elabora as possibilidades de sua existência.

No próximo texto veremos o alerta do filósofo às interpretações pré-fabricadas, sem considerar este homem localizado que se dá conta do mundo à sua volta e lhe descobre o sentido. De antemão, não deixe o leitor tal atenção, do quanto a ciência e os demais seres-aí lhe ditam o conceito de todas as coisas, sem lhe considerar a existência presente e consciente.