domingo, 31 de maio de 2015

DEUS NÃO ESTÁ MORTO

Mt 28, 16-20

A Santíssima Trindade é o maior mistério da fé cristã. Eu diria o clímax da fé. Chegar a esta afirmação, Deus é três Pessoas, é atingir um nível de maturidade diante de Deus e da religião que somente os íntimos da espiritualidade poderiam sem engano. Afirmar a natureza de um Deus, tê-lo visto ou experienciado, ouvi-lo e ter a certeza necessária para seguir a sua vontade com determinação é algo para santos cada vez mais populares. Estes são os fieis que o seguem, os fieis de um Deus que se deixa seguir.

Não lembro mais onde li a história de um sacerdote teólogo, cuja mãe lhe perguntou se ele já tinha visto Deus. Mas me lembro de que diante de sua negação a mãe afirmara que ela sim, via Deus sempre que rezava. Um Deus em três pessoas é, em si, um Deus comunhão, um Deus comunidade, um Deus assembleia, um Deus audiência, um Deus comunicação, um Deus diálogo, escuta, fala, partilha. Um Deus que em sua natureza é mistura e participação. Um Deus proximidade. Um Deus que decidiu não querer ser lido ou estudado, mas conversar conosco sobre si mesmo, como o faz cada Pessoa divina na própria divindade.

Um dos maiores enganos dos maus teólogos será falar de Deus sem ter falado com Ele. Falar sobre Ele depois de ter falado com Ele será, por sua vez, a maior contribuição dos místicos. No entanto eu diria que o conhecimento de Deus dista entre nós muito mais do que o universo da física e que a profundidade e obscuridade dos oceanos ainda são evidentes se comparadas às Pessoas divinas. A maior aventura da humanidade é a descoberta de quem realmente é cada um dos divinos Três. Todas as religiões do mundo ainda não foram capazes de dizer com clareza e simplicidade quem é o seu Deus. Mesmo a nossa ainda se confunde, ou melhor, não consegue dizer coisas simples como quando se diz conhecer uma pessoa, imagina três. Às vezes complica mais do que explica.

O evangelho tomado para a Festa da Santíssima Trindade deste ano é uma versão resumida de São Mateus da despedida de Jesus e seu mandato missionário (Mt 28, 16-20). Há uma frase apenas que quero destacar nesta meditação: “Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (v. 19a). Todo cristão sabe da necessidade do batismo ser feito nas águas e do seu efeito miraculoso de apagar os pecados e livrar do mal. Porém destaco algo que raramente ouvi insistirem na catequese dos sacramentos, apesar de que quando lerem agora muitos dirão que já sabiam.

Sempre me preocupei em explicar bem aquilo que está no Catecismo § 1214: “Chama-se Batismo, por causa do rito central com que se realiza: batizar (baptizeis, em grego) significa «mergulhar», «imergir». A «imersão» na água simboliza a sepultura do catecúmeno na morte de Cristo, de onde sai pela ressurreição com Ele como «nova criatura» (2 Cor 5, 17; Gl 6, 15).” A única coisa que acrescentei à explicação é que Jesus usou uma metáfora para representar o que queria dizer de fato e nós nos detemos no simbolismo negligenciando o seu significado.

Batizar é uma metáfora, uma forma comparativa do gesto material com o seu significado concreto. No mergulho do seu batismo, figura e forma do sacramento, Jesus emerge sob as asas e sombra do Espírito Santo em forma de pomba, ao som da declaração do Pai Eterno, propagando: “Eis o meu filho amado em quem eu pus toda a minha afeição” (Mt 3, 17). Nesta cena a expressão “batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19) encontra o seu verdadeiro sentido. Batizar é mergulhar na Santíssima Trindade. E uma pessoa mergulhada em Deus emerge em Deus, em cada uma das pessoas divinas.

Mergulhar em Deus. Este é o mistério do batismo que faz os cristãos serem quem são: outros cristos (Cf. At 11, 26). O que Jesus tem mandado é mergulhar as pessoas em Deus desde a sua iniciação cristã, para que sejam capazes de observar tudo o que ele nos ordenou. Não há outro modo de cumprir a vontade de Jesus senão tendo intimidade com o seu Pai, com o Espírito Santo e com ele próprio, pela oração e pela adoração. O banho na pia batismal, sem o mergulho de cabeça na trindade santa se transformará e não passará de um rito vazio, que tem surtido cada vez menos efeito porque tem significado cada vez menos na vida das pessoas que dele se aproximam procurando fetiches e ritualismos mágicos.

O que se espera de um cristão iniciado na fé senão a intimidade com o Deus que diz seguir? Por que já se lê, mesmo entre escritores cristãos, de fracasso da fé? O que seria uma fé fracassada senão uma fé sem experiência, sem fundamentação, sem confirmação na experiência de quem crê e daquele em quem se crê? Não se crê no vazio. Ainda se culpa o filósofo Friedrich Nietzsche (1844- 1900) pela afirmação “Deus está morto”, mas eis o contexto de seu ‘ato de contrição’:
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? (A Gaia Ciência, § 125)

Um pouco de honestidade e humildade nos obrigaria a também bater no peito, e se formos sinceros ainda podemos nos perguntar de quem é mesmo a culpa pela ausência de Deus nos corações? De quem não o procura ou de quem não o apresenta? De quem realmente é a culpa pela morte de Deus nos corações e na sociedade tão paganizada?

Deus não pode ser um Deus cultuado apenas nos altares e paredes dos templos. A sociedade precisa de Deus fora dos templos. O povo precisa do Deus amor nas ruas e vielas, nas esquinas, nas periferias mais do que nos oratórios e em aparadores elegantes. Precisamos de Deus nos corações mais do que nos relicários de ouro cravejados em pedras raras, mesmo que de imitação barata dos burgos romanos. Precisamos de Deus tanto quanto de pessoas mergulhadas nele. Só não precisamos de pessoas que escondem Deus enquanto se escondem. Essas ainda não emergiram do batismo e permanecem mergulhadas num mar de pecado e morte, motivo pelo qual se escondem.

Deus só está morto em corações mortos. O mandato de Jesus precisa ser atualizado. Deus não é um Deus misterioso que se esconde. Não é um Deus complicado e incompreensível. Não precisamos complicar o discurso sobre Deus, o enunciado sobre a sua vontade e seus mandamentos. Nem família nem religião precisam pintar um Deus à sua maneira, imagem e semelhança. Basta espelhar-se nele e mudar o próprio modo de ser quando não seguir os padrões trinitários de diálogo, comunhão, proximidade e jamais se afastar de quem erra. A história da humanidade com Deus revela que ele não abandona os seus filhos e que amá-lo e converter-se é uma decisão particular, uma decisão livre, por isso uma resposta de amor.

terça-feira, 26 de maio de 2015

sábado, 23 de maio de 2015

PENTECOSTES

Jo 20, 19-23

“Vinde Espírito Santo!” Esta frase diz muito. É mais que um evocativo. É um clamor: Espírito Santo, vem!

Tenho para mim que a tarefa mais difícil para um teólogo é discursar sobre o Espírito Santo, sobre alguém que só vemos vestígios de sua presença, quando, na maioria das vezes, Ele só deixou a sua marca, sinal da sua presença, muito deferente de Jesus que teve uma vida humana.

Se perguntássemos a um fiel quem é o Espírito Santo? O que ele nos diria? Alguns arriscariam a dizer que é ‘a alma de Jesus’, ou o Divino, ou a ‘pomba’ do batismo de Jesus, o ‘vento’ e o ‘fogo’ de pentecostes. Uns poucos acrescentariam que é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Esta última resposta parece tão complexa que raros tentam detalhar. Meu Deus! Anos de catequese e não sabemos quem és!

Mas o vemos, sentimos, cremos e testemunhamos. Não há pessoa mais maravilhosa que cada um na Trindade Santa. O Pai e o Filho são puro amor um pelo outro e o Espírito o próprio amor entre eles. Penso que foi isto que Jesus quis; deixar-nos o seu amor entre nós. E o seu amor, desde a origem, não é dele apenas, mas entre eles. Um segredo que ainda descobriremos. O amor se quiser ser divino precisará ser fruto de amor. Não há amor verdadeiro que não nasça de amor e não gere amor. Assim é o Espírito Santo: o amor em sua dinâmica. Quem não se ama ou não é amado terá dificuldades de gerar amor e pode até perder o pouco que tem.

Jesus chama o Espírito Santo de ‘o outro Consolador’(Jo 14, 15), ou o Paráclito (16, 7) que é o advogado ou “foi chamado para ficar junto”, literamente do grego. Estas são duas alegorias muito mais próximas de nossa realidade humana do que aquelas da natureza. Primeiro o consolo todos sabem o que é, ou por sua presença ou por sua ausência. Mas dizer ‘o outro’ caracteriza algo diferente do comum, e remete para o de Jesus. Ele é o consolador quando toma sobre si as nossas dores (Cf. 1Pd 2, 24; Is 53, 4).

Agora sim entendemos de qual outro consolo Jesus fala quando se refere ao Espírito Santo. Ele também consola. Portanto deve ser procurado. E quem consola o tem dentro de si. Quem não sabe o que é consolo ainda não o conhece, logo quem não consola não o tem, não o possui. Não se deu conta e não tomou posse do dom mais precioso da alma humana.

 A segunda alegoria é o Paráclito como advogado. Na jurisprudência e cortes antigas era aquele defensor que falava pelo réu. Curioso era que se perdesse a questão poderia cumprir a pena no lugar de quem ele defendia. Não havia nada mais justo que se não conseguisse livrar a pessoa representada ficaria em seu lugar na condenação. Isto parece estranho hoje, mas foi o que Jesus fez. Quem não se expõe em dar a cara a bater não conhece o Paráclito. Logo, quem se descompromete, mesmo diante de quem erra, não reconhece que também participa do fracasso de quem diz amar.

O contexto do evangelho da festa deste ano é jurídico. É de perdão três vezes decretado: “perdoardes, perdoados, perdoardes”. O sacerdote é um juiz no confessionário: escuta, julga e sentencia. Mas não pode condenar, pois Jesus não condenou (Jo 8, 11; Lc 23, 34). Não lhe compete. Os pecados não perdoados “eles lhe serão retidos” (Jo 20, 23), diz Jesus, pois haverá outro julgamento em uma instância maior que os confessionários das igrejas. O juízo final sentenciará a todos, inclusive a morte, salário do pecado (Rm 6, 23) e o inferno que serão lançados no lago de fogo. Será a morte da morte e o fim do inferno. (Ap 20, 14) Esta sentença também não está em mãos humanas. É o mesmo Espírito quem faculta o perdão e lembra o pecado do penitente, mas não esqueçamos que não foram os pecados que Jesus soprou e sim a faculdade de perdoar.

Celebra-se neste evangelho a Festa de Pentecostes, originalmente judaica, a festa das tendas, 50 dias depois da páscoa. A páscoa era também a festa da colheita dos grãos, dos sacos cheios de alimento e do lucro que sustenta a família, da abundância e da generosidade de Deus. 50 dias para os grãos secarem e debulhá-los para guardar em sacos, como ainda se faz com o feijão e outras sementes. Ali se recolhiam as tendas armadas nos campos e desertos para voltar para casa com os frutos do suor e do trabalho humano.

Havia muita gente em Jerusalém naquele dia. Foram para o livre comércio e diversão, para o lucro e o prazer. É a estes que o Espírito dirige uma nova língua. Nova apenas para os discípulos de Jesus que ainda não conheciam essa nova língua, mas não para partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Asia, Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, Cretenses e árabes, que ouviram os discípulos falarem em sua própria língua (At 2,8-11). De fato é de se admirar, como o fizeram os estrangeiros (v. 12). Parece que os seguidores de Jesus ainda precisavam da conversão do ouvido e da língua. Coisa tão necessária ainda que provoque mais zombarias e incompreensões (v. 13), como naquele dia “tão bonito em Jerusalém”.

Meu Deus, mas o que veio fazer aqui na terra? Nós tínhamos perdido mesmo a direção. Tava tudo tão confuso! Que fé era aquela tão hierarquizada que cada vez mais distanciava os irmãos uns dos outros. É assim mesmo, quando os irmãos brigam entre si quem os une são os pais. Precisava mesmo que fosse Deus quem viesse. Deus Filho e Deus Espírito Santo, não vieram apenas sentir conosco, mas sentir por nós. É por isso que na reconciliação entre os irmãos, enquanto eles disputam, os pais não atiçam a fogueira, eles a apagam mesmo que seja com seus pés e suas mãos.

Se amar ‘entre’ já é divino, amar “por” é a divindade sendo quem é, em sua essência e dinâmica de recriação. Refazer-se, remodelar-se, rever os próprios conceitos e ideais, eis ação do Espírito não só em cada fiel, mas em toda a igreja. Quem é igreja precisa agir no Espírito Santo. Precisa deixar que ele sopre, queime, decole, pouse, mas também console e defenda, em um nível ainda acima do familiar, muito mais que o de uma mãe, pois a mãe ainda pode esquecer o seu filho, mas Deus não (Is 49, 15), nem o Espírito Santo, que é de viva memória (Cf. Jo 14, 26).

Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo...


quarta-feira, 20 de maio de 2015

A SABEDORIA DA DESPEDIDA

Marcos 16, 15-20, na Festa da Ascensão do Senhor

São três as colunas do evangelho dessa semana: A primeira é o mandato missionário “ide pelo mundo inteiro e anunciai o evangelho a toda criatura!”; a segunda são os sinais que acompanharão aqueles que crerem: expulsar demônios, falar novas línguas, pegar em serpentes e beber veneno mortal sem lhes fazer mal algum e curar doentes; e o terceiro é a despedida.
Quem já se despediu de alguém que demoraria em rever sabe que alguns gestos são clássicos. As últimas palavras que resumem uma vida, os conselhos e a garantia da pertença além da presença. Jesus é mestre em despedir-se, sabe que não é deste mundo (cf. Jo 18, 36), sabe que está de passagem e tem pressa (cf. Jo 12, 23), sabe que precisa sair de cena. Inclusive isto é um desígnio não totalmente compreendido pelos evangelizadores, desde os apóstolos (Cf. Mt 16, 21ss).
O mandato, os sinais e a despedida, são três pilares de um último legado que revela o programa de vida de Jesus de Nazaré. Vale lembrar que, embora sejam sete os sacramentos católicos, toda a vida de Jesus é sacramental, ele mesmo é sacramento do Pai (Cl 1, 15). Portanto cumprir o que ele mandou é já celebrar sua ação salvadora na comunidade.
 Primeiro vejamos o ‘mandato’. Ele mandou, isto nos basta, deve ser feito. São Dez os mandamento da lei mosaica, mas há uns outros mandamentos na boca de Jesus. Coisas que ele mandou fazer e a igreja sabe que disto depende a salvação do mundo. Pregar o evangelho a toda criatura porque a natureza também sofre com a ignorância da fé. Toda a criação geme e sofre com dores de parto esperando com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus (cf. Rm 8, 19-23), padece esperando a manifestação de tantos omissos e preguiçosos, infiéis medrosos que não assumem perante o mundo e a sociedade as suas esperanças.
O que há? As convicções não estão firmes? Ainda não está pronto para dar as razões e as provas da sua fé (1 Pd 3, 15)? Triste é tal comodismo em comunidade de crentes. Triste é quando o vizinho nunca ouviu ou viu a fé expressa de seu irmão em Cristo (Cf. Tg 2, 18). Triste é a paróquia que não entendeu o próprio significado da palavra ‘para’ e ‘oikos’, do grego ‘além’ e ‘casa’. Mas quem conhece grego deveria ensinar os nomes que usa para designar uma determinada comunidade de fieis sob os cuidados de um pároco (cf. Cân 515, § 1), ou literalmente ‘aqueles que estão fora de casa’.
O segundo pilar são os ‘sinais’. Testificam quem está por trás da ação evangelizadora, ou melhor, em nome de quem se evangeliza. Não pregamos a nós mesmo, o que garante a pecadores também evangelizarem. Anunciamos Jesus, e nisto também somos evangelizados. Calar a Palavra é perder a própria consciência que também nos autoproclama a doutrina do mestre. Quando alguém não evangeliza está de certo deixando de escutar também.
Seguem agora os sinais que mais parecem alertas e não milagres.  Expulsar demônios é o primeiro deles. Na literatura antiga demônio era um gênio, ou espírito que acompanhava a pessoa lembrando suas fraquezas, ora confundido com a consciência, ora com a memória. Porém no cristianismo é identificado com os anjos decaídos. Logo, o primeiro sinal é não se deixar guiar por outro que não seja Cristo, sem preconceitos ou vã doutrinas, ao sopro de qualquer vento (Ef 4, 14), ou seja, ter os olhos fixos no Mestre (Hb, 12, 2; Fil 3, 13; 2Cor 4, 18).
Falar novas línguas é o segundo sinal. Logo depois de libertar-se de si mesmo vem a  mudança do modo de se expressar. Falar uma língua ao menos compreensível, de alguém que tem uma coisa nova pra falar e não o mesmo discurso de sempre. Alguém que encontrou e sabe uma coisa que ninguém jamais saberia. Essa nova língua vem de uma nova cultura, de uma nova forma de entrar em diálogo com os demais, para ser entendido e para compreender. De que adianta uma sabedoria que não esclarece, ou um conhecimento não compartilhado? Evangelizar é descobrir novas formas de falar de Cristo. Do contrário não estaríamos preocupados em que ele fosse conhecido. Sendo assim, nem a pessoa que fala sabe ou crê no que diz.
Pegar em serpentes e beber veneno mortal sem lhes fazer mal algum é o terceiro sinal do evangelizador. Jesus já falara em pisar em serpentes no estágio dos 72 discípulos (Lc 10, 1-11), mas desta vez pegar e beber o veneno, da serpente ou não. A questão é o risco imediato que corre o evangelizador. Risco de morte, perigo, vítima da astúcia e camuflagem das serpentes ou da bebida enganosa. Quem quiser que pense que a sorte do discípulo não será a do seu Senhor (Cf. Mt 16, 24).
Evangelizador que não dá a cara a bater, não se expõe, é como aquele que pega no arado e olha para trás, ‘não é digno de mim’, diria Jesus (Cf. Lc 9, 62 e Mt 10, 37). A garantia é ‘não lhes fazer mal algum’. Alguém poderia até dizer: ‘mas padre você tá sofrendo!’ e o padre também perguntaria: ‘e que mal isto pode me fazer?’ O mal conseguiu alcançar Jesus? Tudo o que de ruim ele passou lhe fez algum mal? O mal pode realmente fazer algum mal diante de Deus? O mal é uma capa densa de confusão embebida em mentiras que turva a fé e esconde a verdade. Diante de Jesus o mal se converte em bem. Não é o que cremos?
Por fim o último sinal é curar doentes. Já ouvi muita pregação explicando as alegorias bíblicas destes sinais. Francamente, doença é doença! Dói, fere, precisa de remédio e atenção, seja qual for, sem comparações ou relativismos. Lembro de uma vez um amigo me acompanhar à unção dos enfermos que administrei a um idoso, ultimando-se em um leito de hospital na minha última paróquia. O derradeiro sopro daquele senhor expirou enquanto quando rezava: “Eu, pela faculdade que me foi concedida pela Sé Apostólica, concedo-te a indulgência plenária e o perdão de todos os teus pecados, + Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém!” Continuei até o fim do sacramento quando o amigo exclamou: “eu não sabia que a Igreja tinha sacramento tão misericordioso!” Porém sabemos que não é o único, mas lamento que o cuidado com os doentes tem se perdido como sinal evangelizador.
Voltando aos pilares, o terceiro é a despedida, um duplo de saídas: a ascenção de Jesus e a partida dos discípulos. Pregar e sair. Lembra o ‘vinde e vede’ do início da vida pública de Jesus e o ‘ide e pregai’ do seu final. Ir e vir é caminho e destino certo dos discípulos. Não parece que ‘ficar’ seja o programa definitivo da evangelização. Estamos todos de passagem. É necessário seguir adiante. Porém, passagem não é passeio. Não se trata de turismo religioso entre as comunidades, mas de um método. Ir fazer algo, e fazer tão bem feito que continue mesmo sem o autor. Jesus veio e voltou porque tinha um objetivo muito claro a cumprir.
É lamentável, como missões sem objetividade se tornam levantes de poeira, logo assentam de novo. Saber sair é tão necessário quanto saber chegar. Começar bem é tão necessário quanto concluir bem. Começo e fim precisam estar nivelados, porém findar melhor sempre compensará um mau começo. Assim não nos alcança a máxima de Aristóteles: “um pequeno erro no princípio acaba por tornar-se grande no fim”.
Mas por que a despedida é tão necessária? Por que não morar conosco até o fim dos tempos? Por que confiar em homens a missão que ele mesmo assumiu do Pai e compartilhou com o Paráclito? Poderíamos perguntar a quem indaga se há outro modo de provar a adesão do ensinamento senão na ausência de quem o apregoa. Só vemos o que está embaixo das águas quando a maré recua. Só teremos fé de fato quando o Cristo for tirado. Quando as pessoas voltarem às suas casas é que poderão saber se realmente levaram algo do que receberam.
Outra pergunta aos indagadores é: o amor, que falamos na semana passada, recíproco na sua vitalidade, poderia se suster se apenas uma das partes amasse? Água que sempre derrama sacia de início, depois transborda ou inunda, e desperdiça. Tem um ensinamento na ausência de cada um que está no âmago do que foi transmitido. E para que o ensinamento prevaleça é necessário que o mestre desapareça. Só saberemos o que realmente assimilamos quando não houver mais quem ensine. Então fico o que aprendemos. Assim o foi com os nossos pais e o será conosco perante a quem amamos, se nos amam de fato (Cf. Jo 14, 23s).
17.05.2015

AMOR E RELIGIÃO

João 15,9-17

De certo que o tema do evangelho deste domingo é o amor, talvez a palavra mais complexa de toda a existência e a síntese de tudo o que há. Não é à toa que esta perícope conclui a parábola da Videira Verdadeira e sua união vital aos ramos. Ainda mais não esqueçamos que faz parte do discurso da Ceia, abertura da Paixão de Cristo. Em um contexto litúrgico e pascal, vale até lembrar do domingo quando falou do Bom Pastor. O texto acima vem coroar essa sequencia.
“Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor.” (v. 9)

Sem erro poderíamos resumir vidas e sagas em amor. Sem exagero poderíamos dizer que é o objeto de toda esperança e a maior dádiva. Amor é em si um conceito, porém tão universal que pode se perder na plenitude do que significa. Por dar sentido a tudo pode perder seu sentido naquilo a que se atribui. Coisa necessária é aplicar o amor. Um amor sem caracterização, sem atribuições seria um amor tão abstrato quanto inatingível. Mas de qual amor estamos falando?
“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor.” (v. 10)

Há diversos amores em nossa vida. E graças a Deus que é assim! Mesmo o amor mais verdadeiro e real corre o risco de não se concretizar. A experiência mais plena da humanidade pode ser tão atacada que perca inúmeras guerras, até a derrota final. Há quem diga que não há perdas no amor. Há quem diga que não errou nos amores em que foi desprezado. Mas há quem diga que aqueles amores imbatíveis não existem mais. Foram fortes até a morte. Falar de amor sempre faz sonhar, relembrar, mas nem sempre querer de novo. Mas, de qual amor estamos falando mesmo?
“Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (v. 12)

Prefiro falar de um amor que não nasceu aqui, e que foge do enredo da literatura corrente e comum das grandes paixões que costuram nossas histórias. Nem arriscaria contá-las, eu que não vivi uma paixão dessas. Meditamos aqui no amor que se aprende, no amor que passa de pai para filho. No amor intenso de um Deus que gera um seu igual, Deus em sua natureza e filho em sua Pessoa. Falamos ainda menos do que isso, falamos apenas de algumas formas de como esse amor divino chegou até nós.
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos.” (v 13)

Jesus nos pede uma forma específica de amor: aquela entre Ele e seu Pai. Meu Deus do céu! Um amor assim tão alto!? Não pede menos aquele que dá mais. O segredo desse amor é a sua dinâmica. Não é um amor que se sabe apenas ou se conceitua, mas se experimenta aqui em três ações: permanecer (n’Ele), guardar (os mandamentos) e dar (a vida). Já o papa Bento XVI falou do Ágape de Deus como um amor que evolui. Amor que não progride tende a enfraquecer-se até a extinção. Jesus ensina o seu estilo de amar numa dinâmica não muito hierárquica, mas misturada de “doação-guarda-permanência”. Quem ama mesmo minimamente inicia esta ciranda. Só não precisa deixar de cirandar.
“Vós sois meus amigos se fizerdes o que eu vos mando.” (v. 14)

Assim Ele elege a amizade seu tipo de amor humano predileto. Não apenas isto, mas condiciona o discipulado, o testemunho e a vocação. Amizade é o amor de Deus humanado, porque nela se transformarão todos os demais amores antes de se encontrarem com o Ágape de Deus. Até mesmo Jesus (filho do amor incondicional) quis amar como amigo (quis ser recíproco). Há uma partilha sadia nessa forma incompleta de amar. Há algo da própria essência da criação que se harmoniza e se complementa em comunhão. Há muito de amizade em tudo que Deus criou. Assim poderíamos conceituar o ser humano e suas paixões. O ser humano é amor recíproco, enquanto Deus é amor absoluto. Por isso Deus nos presenteou com esse jeito de amar, para que também ele experimentasse daquilo que nos dá: amor.
“Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo aquilo que ouvi de meu o Pai.” (v. 15)

Pessoalmente diria que não se pode ter medo de amar, ou de ser amigo. A negação de um tal sentimento assim tão generoso seria uma negação a si mesmo. Digo-o porque não seria concreto um amor unilateral, dado que seria contígua à sua existência a ausência da reciprocidade. Amor como o entendemos e como o queremos exige retorno. O amor sem volta leva tanto amor que acaba. Amor é correnteza caudalosa que enche e baixa, mas não seca, não vira lama, não atola. Um amor assim não poderia ser amor, ao menos não continuaria sendo amor.
“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto, e o vosso fruto permaneça...” (v. 16)

Seja na religião, nas palavras de Jesus, seja na vida ou na boca dos amantes, amor tem categorias. Para que tudo, ou apenas o que queremos, seja considerado amor precisa tomar dele as aparências. Amor é uma dinâmica que envolve de tal forma os seres que lhes gera dependências recíprocas, como as que Jesus citou: Primeiro ‘permanecer’. Ah, sim! Quem ama fica. Segundo ‘guardar os ensinamentos’. Ah, sim! Quem ama jamais esquece as palavras e a vontade da pessoa amada. Terceiro ‘dar a vida’. Essa então! Há amor verdadeiro que não se gaste pelo outro? Caro leitor, caso lhe falte alguma dessas não desista, insista. Amar sempre será um esforço e nunca será sem paga ou sem mérito.
“Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros.” (v. 17)

Por fim, há um amor que bem traduz estas mal traçadas linhas. Embora sem amores apaixonados, porém com grandes amizades, quero deixar meu beijo carinhoso a todas as mães pelo seu dia, e lhes dizer obrigado por sua amizade tão sincera, apesar das agruras, e de algumas poucas que não conseguiram ser recíprocas. Mesmo estas poucas já tiveram a amizade de suas mães numa ciranda que não se acabará, da qual a própria vida e existência humanas dependem.
“Eu vos digo isso para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena.” (v. 11)


10.05.2015

RAMOS DA MESMA VIDEIRA

(Jo 15,1-8)

Hoje refletimos um pouco sobre a Videira Verdadeira, a terceira e mais bela das alegorias silvestres citadas nos evangelhos, entre as quais Jesus se identifica, como a do semeador e a dos vinhateiros homicidas.
Jesus usa diversas figuras do campo e do cotidiano de um povo simples, válidas para todos, mesmo para os grandes cidadãos das metrópoles de hoje. Ele fala da árvore que se conhece pelos frutos, mandou reparar nos lírios dos campos e na sua beleza espontânea, no grão de mostarda, na figueira infértil, algumas dessas inspiradas em outras das Escrituras.
“Vocês já estão limpos, pela palavra que tenho falado.” (v.3)
Essas comparações são a palavra de Deus já citada na natureza. É o ensinamento disponível a todos universalmente. O senso comum negado ou confirmado pela ciência. É uma recorrência eloquente do mestre. Hoje ele mesmo se compara a uma videira. E como o pastor está ligado ao rebanho, ele e nós assim nos ligamos essencialmente: "Eu sou a videira", mas "vocês são os ramos".
"Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma.” (v.5)
Não precisa ser biológico ou agrônomo para entender que os ramos são a parte da videira que se estende procurando onde se prender e amarrar-se para suster os cachos de uvas. A sabedoria entendeu, a muito custo, que a poda é vital para o arbusto e para o sabor de seu fruto. A seiva que corre não se desperdiçará em galhos sem frutos. Por isso “eles devem ser cortados no terceiro nó”. Assim me ensinou o Pe. Fernando Ávila, um amigo, quando eu plantei videiras, no terreiro do seminário onde fui reitor.
Eu queria ter mais claro algo sobre a videira e sobre Jesus. Confesso que às vezes ficava admirado com a quantidade de galhos e folhas cortadas. Embora cresceram na videira não vigariam. Eu as observava amontoadas debaixo da videira. Mas não as jogava, preferia triturar e encostar aos pés da planta para ver se ainda poderia servir para adubo.
“Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados.” (v.6)
Confesso que é constrangedor ver o joio crescer com o trigo enquanto os galhos da videira são arrancados. Parece confuso e injusto, mesmo sabendo que um faz mal de fora e o outro destrói por dentro. O joio é outra coisa além do trigo, mas os ramos e a videira são a mesma planta. Entenda-se então que a poda da verdadeira se dá justamente em si mesma.
“Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda.” (v.2)
Podar os outros não seria a coerência da videira. A seiva que passa nos ramos é que deve ser direcionada, concentrada. Sem antonomásias ou projeções, o critério da poda é a união a Cristo e nada mais. Sem pessoas, prédios, ou fórmulas, mas na única pessoa necessária: Jesus.
“Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e será concedido.” (v.7)
Outra união ou enxerto seria um risco à plantação. Eis por que arrancar. Porque suga a vida dos demais galhos. O joio sufoca e a rama infértil rouba seiva, enfraquece toda a planta. Estas são duas grandes ameaças aos frutos. É um alerta que nos pede coragem e desprendimento. Há duas lições: união e poda.
Cortar pessoas do círculo de amizades, mesmo entre os de religião, parece ascese, mas ferir-se e renunciar a si mesmo, negar-se, perder algo enramado, seguro a outros galhos, para não roubar a seiva da videira, isto parece ser uma pratica cada vez menos comum, mesmo entre os de religião. Basta procurar pessoas com esse testemunho de vida na comunidade, seja onde for. Quantos cristãos provados se conhece?
“Meu Pai é glorificado pelo fato de vocês darem muito fruto; e assim serão meus discípulos.” (v.8)
Deus queira que o leitor e o escritor sejam desses raros ramos verdadeiros, provados no fogo e capazes de renúncias. Mortos em Cristo, mas novas criaturas. Jesus o sabe. Vale lembrar que Ele também sabe ser duro na ternura e o é com todos. Há uma prestação de contas, uma cobrança do que foi confiado. Veja a parábola dos talentos, a separação do rebanho, não há cristianismo sem responsabilidades. O julgamento, porém, não é dos outros, mas de si mesmo. Não julgarei você, mas eu preciso me julgar.
“Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem em mim. “(v.4)
Por fim há também uma última responsabilidade na cepa da raiz ou no corte dos ramos, em quem exerce alguma paternidade sobre os demais. Eis uma missão delicadíssima em qualquer circunstância. Se a poda é pessoal, e há alguém externo à árvore que poda, seu papel é o do Agricultor, o de Deus o Pai, na parábola. Exercer a mão divina na vida do jardim que não plantou será um trabalho deveras delicado, sobretudo se o vinhateiro não é o dono nem o herdeiro. Mas também, um dia, eles prestarão contas ao Agricultor; afinal, quem sabe qual árvore o Pai não plantou ou qual galho não está unido à videira?
"Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor.” (v.1)


03.05.2015

PASTORAL E BONDADE

O comentário desta semana parte da passagem em que Jesus se apresenta como o bom pastor em razão de dar a sua vida pelas suas ovelhas. Três vezes ele afirma isto como se condicionasse e justificasse porque é o bom pastor e não um mercenário. Falar de pastores enquanto membro de igreja que sou é sempre muito delicado. Acredito que os colegas levantam suas orelhas e arregalam os olhos enquanto outros já se perguntam se tenho ou não coerência para falar a respeito. Calma gente! Só quero compartilhar algumas ideias sobre Jesus e sobre bondade.
O tema do bom pastor é um assunto retomado pelo Filho do Amor em suas pregações. Uma figura muito frequente na cultura bíblica por se tratar da identidade do povo nômade de Israel bem como da identidade assumida por Deus já no Primeiro Testamento. É um tema que sempre vem à tona diante das incoerências e dos maus tratos que o povo padece das mãos dos seus lideres. Daí porque Jesus não só toca no assunto como também se identifica. Igualmente, ele está cumprindo uma profecia do seu Pai que diz: “eu mesmo arrebanharei o meu povo!”, em Ezequiel 34, 15. Todo o capítulo é um belíssimo poema e programa pastoral que merece ser lido na íntegra. Aconselho que o faça!
No oráculo acima há inúmeras declarações valiosíssimas que figuram um programa pastoral a ser seguido por quaisquer pastores que queiram se assemelhar a Jesus se querem ser bons. De certo que o Mestre conhecia esta promessa e a cumpriu à risca. Na profecia, depois de libertar as ovelhas de maus pastores assim diz o Senhor: Eu em pessoa buscarei minhas ovelhas, seguirei seu rastro e as livrarei, apascentarei, procurarei, recolherei, curarei, guardarei e salvarei. As ovelhas por sua vez, pastarão, beberão, deitarão e repousarão.
A bondade do pastor, segundo o testemunho do Cristo não reside apenas em ele ser bom de per si, mas na síntese da relação entre pastor e rebanho que se concretiza naquilo que faz por elas, em dar a sua vida. Sobre isto já demonstramos em artigos anteriores, sobretudo Sexta na Paixão. Ninguém se engane com a figura pastoril aqui apresentada como se valesse apenas à religião. A máxima do bom pastor é mister para todos e quaisquer um que cuidem de ovelhas. Seja pai ou mãe, dono ou patrão, líder ou ministro, professor ou político, padre ou pastor, etc., de algum modo você encontra na figura do Cristo, o bom pastor, o referente do qual é imagem, ou como diz um amigo meu “sem trocadilhos, mas para idealizando, realmente Deus nos fez uma “selfie” para que o amor fosse self e mútuo...”
O selfie é a imagem de nós mesmo, aquela que produzimos como nas fotos, e o self é cada um em si mesmo, na alma e na consciência. As palavras podem até ser parecidas, mas suas percepções podem divergir ao ponto de não mais representarem as mesmas pessoas. Assim são os papeis sociais quando não são vividos como síntese na mesma pessoa. Daí manter os olhos fixos em Cristo como o original de si mesmos. Sê-lo jamais o seremos! Porém querer assemelhar-se a ele é o caminho mais curto e eficaz na redescoberta de quem somos interiormente como filhos de Deus e exteriormente como reflexo seu, sua imagem e semelhança.
Pelo que foi dito, meditar hoje sobre o bom pastor é repensar também o bom pastoreio que exercemos sobre as pessoas que Deus nos confiou e ao mesmo tempo sobre quem de fato somos ou nos tornamos, uma vez que nos refletimos naquilo que fazemos. Ser reconhecido pelo que faz, ou melhor, o dilema da identidade entre ser e fazer precisa ser desfeito, para não virar outro dos tantos riscos de enganos morais. Sim, é pelo que faz que Jesus é reconhecido; não fizesse o que fez jamais saberíamos quem foi.
O tema do bom pastor elucida uma caminho de reflexão moral válido para a igreja e para todo tipo de autoridade. Há uma identidade e uma identificação em quem somos e no que fazemos. Outra grande clarividência é que isto toca diretamente na bondade tanto de uma quanto da outra, da identidade de quem somos e da ação que praticamos. Penso ainda que autoridade deveria derivar de auteridade, pois somente entendendo que o verdadeiro papel social é ser o outro de alguém. Seja o que formos ou quem formos estaremos exercendo ali uma aute(o)ridade, ou melhor, sendo o outro do outro, não um igual, mas um semelhante que não sou eu mesmo, e exerce sobre mim uma diferença que agrega ações cujo fim último é o bem. Um bem que faz bem a ambos, que faz o outro ser bom.
Espero que haja algo a contribui sobretudo em um bom exame de consciência sobre como temos sido pastores. Mas sobretudo em como podemos nos tornar bons e em como o fazer pode ajudar o ser na descoberta e remodelagem de si mesmo. Isto porque sei que, embora já sejamos pastores, nem sempre somos tão bons quanto gostariam ou gostaríamos.


25.04.2015

CRISTÃOS INTELIGENTES

Há quem pense que espiritualidade é sentimentalismo e que fé se antepõe à razão. Queria saber o que diriam essas pessoas ao ver Jesus despertar a fé dos discípulos abrindo-lhes a inteligência. Mas antes ele apresenta três pequenas situações que mais parecem graus ou tipos de entraves à fé inteligente. Costumava se pensar que era preciso ser cristão de fé inteligente para passar por estas situações, contudo a passagem do evangelho deste domingo, nas missas católicas, apresenta uma ordem e enredo divergente.

A primeira situação é a que Jesus encontra os discípulos após sua ressurreição: cansados, cheios de medo, assustados, preocupados, com dúvidas no coração (Jo 24, 38). Conheço muita gente que usa essas situações como argumento de desistência ou fracasso, não só na igreja mas na vida. De fato o que se esperava de quem tinha uma esperança, daqueles que acompanharam e escutaram as promessas, era uma atitude diferente. Mas se fosse assim não seria humano! Tudo isso que lemos nesse reencontro de Jesus com seus discípulos revela apenas a situação a qual ele veio dar novo sentido. A alegria não é minha, nem o sucesso ou a verdade do que prego. Ela é uma pessoa e esta pessoa é Jesus. Se desanimamos é porque há motivos. Jesus tem uma sabedoria única em lidar com essas situações, a saber, ele as acolhe e dialoga com elas. Sua resposta é completamente outra ao coração que titubeia: “a paz esteja convosco!” (Jo 24, 36)

Logo, o primeiro ato de uma fé racional, uma fé que pensa e reflete, é o de reconhecer-se e não ter vergonha de lamentar, chorar, dizer-se triste por aquilo que a religião lhe faz ou mostra. É neste nível que se encontram muitos irmãos, alguns até por causa da própria fé que seguem e defendem. Questionar-se e àquilo que segue nunca foi ou será ignorância, contudo não saber os por quês do consentimento da razão ou da fé cega talvez seja a pura aberração religiosa. Seria um lamento sem experiência e um conhecimento sem explicação. “Pro que choras?” (Jo 20, 15) Esta é a primeira palavra do ressuscitado a Maria Madalena.

A segunda situação de prova ao prêmio da inteligência do crente é esta: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede!” (Jo 24, 39). Confirma que o ressuscitado é o crucificado, que a dor e o abandono, o pecado e a morte, não são ilusões nem podem ser ignorados. Lamento deveras quando alguém reza para não sofrer. Vejo este sem entender o que passa e por quem sofre. Jesus morre para que ninguém pague pelos próprios pecados. Padecemos apenas as suas consequências. Ele mostra que todo sofrimento tem uma finalidade, é meio e tem um fim. Desde o judaísmo, passando pela cruz, definitivamente o cristianismo não é uma religião de prazeres e satisfações, mas de desagravo, sufrágio e intercessões. Assombrosa é uma vida nova sem luta, ou conversão fácil e imediata sem o banho de sangue do redentor. Quase o escutamos dizer: “Toca nas feridas e crê!”

Logo a segunda expressão de uma fé que se explica é uma fé que se manifesta e que é visível em carne e osso. A prova racional da fé são os joelhos calejados e as mãos postas, ainda mais as marcas que o credo deixou no corpo e na vida. Sangue, suor e lágrimas de um crente demonstram a sua capacidade de reflexão e entendimento, de apreensão e transmissão do conteúdo. Ele entendeu e sabe dizer o que é crer.

A terceira situação, ou degrau rumo à sabedoria pascal de Jesus é o alimento. Tema tão caro em suas pregações e elevado à condição mais alta da natureza após a sua encarnação. A criação se faz criador. A ânsia mais profunda das mitologias e da própria ciência. A inversão da mesa e dos ponteiros. E verdade, o alimento revela quem somos. Da mesa à fome “Tendes aqui alguma coisa de comer?” (Jo 24, 41) a tentação do deserto se transformou em dádiva. Naquela ceia que já era missa ele reúne o sentido de sua presença: entre irmãos não se admite passar fome. Isto não seria cristão. Repartir, dividir, dar do que tem, desprender-se, pobreza verdadeira, desapego, liberdade interior, não prender-se a si ou ao que tem, ser doado, este é o autêntico jejum.

Logo não haverá razão lógica que sustente uma fé inútil, já que não se traduz em obras, segundo São Paulo que diz: “Mostra-me tua fé sem obras que te mostro a minha fé pelas minhas obras” (Tg 2, 18). Mas prefiro ainda esta prova cabal de Jesus quando afirma que “tive fome e me deste de comer” como a primeira atitude daquele rebanho que será acolhido na separação entre bons e maus: “vinde, benditos de meu Pai.” (Mt 25,35) Ouso em afirmar que fé individual ou religião de acúmulos e ostentações tem ouvido mouco aos ensinamentos e apelos do seu Mestre no eco de tantos irmão que secam suas gargantas no mesmo apelo aos sábio das crenças: “Tenho sede!” (Jo 19, 28)

Parece-nos e a Jesus que um coração tíbio, o medo do sofrimento e a omissão na partilha são opostas à virtude intelectual da fé e escondem as provas do que se crê (cf. 1Pd 3, 15). Fiel sábio é aquele que em cada fraqueza pensa em Jesus e reinterpreta sua situação. Após falar das três elencadas acima “Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras.” (Jo 24, 46) Quem sabe nossa ignorância religiosa não esteja embargada por alguma delas?

Quem sabe o problema de alguns cristãos que não entenderam a mensagem de seu mestre não seja o medo de enfrentar suas fraquezas pessoais e as mascare sem sinceridade. Quem sabe não seja o apego as seguranças pessoais e zona de conforto, o bem estar e status que conquistou mesmo na igreja e não largue o osso rosnando e rangendo dentes a quem se aproxima, incapaz de perder, humilhar-se ou ferir-se por alguém. Quem sabe não seja o capital acumulado, a barriga saciada e o lucro que acumula cada vez mais explorando as consciências mais simples. É sempre “venha a nós o vosso reino” e nada de “seja feita a vossa vontade”. Esquece que a salvação já foi comprada e paga com o sangue do redentor.

Quem sabe qual o problema de quem, dessa ou daquela religião!? Mas a solução está aí. Que se abram as inteligências, para que o mandato missionário do Cristo, como ele disse, “vós sereis testemunhas de tudo isso” (Jo 24, 49a), seja em cada um libertação de alma, corpo e mente.

20.04.2015

MISERICÓRDIA SEMPRE

Há pouco partilhava com um amigo sobre este artigo e ele me perguntou porque não o postei ontem. Respondi que prefiro sempre deixar que o dia me fale por si mesmo. Só então depois digo o que conversamos, o dia e eu. E hoje ele me disse o que segue...
Depois do amor com certeza a experiência mais nobre é a Paixão. E depois dela a sua primogênita, a saber, a misericórdia. Os 3 são sentimentos humanos que atribuímos a Deus, pois lançamos sobre Deus nossas maiores aspirações. À divindade tudo que  temos de melhor.
Mas se vem dele ou lhe atribuímos não importa... Isto só prova à grandeza desses valores. Amor, Paixão e Misericórdia é a tríade do desfecho da vida de Jesus. E dando continuidade à sua grande semana neste domingo se celebra a Divina Misericórdia.
Creio que a Bíblia precisava mesmo ter sido escrita em três línguas: Hebraico, Grego e Latim, senão correríamos o risco das interpretações particulares e já aqui as línguas se interpretam cheias de cultura e semântica. Explico: misericórdia em latim: miseratio - cordis, traduzidas por compaixão e coração. Mas quero ir além, até a raiz de "miseratio", "miser" que é infeliz e desprezível. Então por se tratar de um ato do coração, de amor ou paixão, misericórdia é ter o coração no que é desprezível e infeliz. Ou melhor, é amar o que não é amado. É inclinar-se sobre, para sentir com e sentir junto de.
Logo, é misericordioso quem vai além das paixões, além do simples sofrer por quem ama, para sofrer por quem não ama ou não é amado. Do que foi dito, seria a misericórdia um sentimento maior que o amor, maior que a paixão? Prefiro entender que não há misericórdia sem amor ou paixão e que ela decorre dessas outras duas. Os sentimentos se completam enquanto evoluem. Eles não se trocam, mas se complementam enquanto se transformam. Em algum momento na vida de quem ama houve paixão, e precisa haver misericórdia. Do contrário eu arriscaria em dizer que esse amor essencial jamais evoluiu.
Jesus, por sua vez, nos dá diversos exemplos para a autoanálise. Porém está falando de si e de seu pai: do Deus amor e do filho do amor. A parábola do pai misericordioso com o filho pródigo é clássica. Quase não vemos a imagem do divino Pai que anseia a volta celestial de seu filho depois de tocar os pecadores. Penso quando leio e rezo q o filho do amor se enchia do que conhece do Pai para falar da busca arriscada, porém destemida da ovelha perdida. A misericórdia parece ser o estágio final na identificação com a essência de Deus que é amor. De modo que se lhe falta poderia negar a verdade desse sentimento.
Jesus chega a dar uma condição especial à misericórdia na linha da reciprocidade. Ao passo que a compromete também garante a volta desse tipo de amor. Lembremos que em tudo ele nos manda "fazer o bem sem olhar a quem", o que a mão direita fizer que a esquerda não saiba, mas quando fala da misericórdia a eleva à condição de Bem Aventurança e de reciprocidade. Bem Aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia. É quase uma aplicação da Lei do Talião: olho por olho, dente por dente.
Algum justo de plantão poderia dizer: e quem não for misericordioso alcançará misericórdia? O "justo de plantão", estilo palmatória do mundo, busca igualdades em que não costuma se inserir. Mas lhe demos uma resposta: a misericórdia é um caminho, uma progressão do amor e uma garantia de retorno do amor que se dá. O mais só a vida, a experiência e o céu dirão.
O caminho da felicidade, a bem aventurança, trilha por aqui: a misericórdia. Todos a querem, poucos a experimentam. Jesus ensinou: dê misericórdia, seja misericordioso e alcançará, ela retornará a você. Alguém será misericordioso contigo. O caminho da experiência é esse. Só não é assistir a uma tragédia e compadecer-se ou celebrar um rito de memória como cumprimento de preceitos religiosos apenas.
Ainda no Antigo testamento a palavra para misericórdia é hebraica, Hesed. E traduz a fidelidade consciente e responsável, coisa de família. Porém o mais apropriado seria dedicação. Assim se apelidava o "HSD" de Deus, tantas vezes ligado a "emet" (verdade). É essa proximidade que valida um sentimento que pretende expressar amor e verdade. Compromisso, comprometimento, fidelidade, responsabilidade.
Esses sentimentos precisam ser reais, existirem, aparecerem de fato; precisam ser usados, aplicados, vividos, experimentados. Não são palavras latinas, hebraicas, gregas ou portuguesas. São a evolução do amor. Deus é amor porque é compassivo e misericordioso, assim também citado no Alcorão.
Deus me permita a seguinte pergunta: Se Deus não fosse compaixão e misericórdia continuaria sendo amor? De fato se não amamos os infelizes, quão desprezível não é essa situação! A solução é muito simples se usarmos a mesma fórmula do amor e da paixão. É colocar-se no lugar de quem padece, como fez Jesus vindo ao nosso encontro e Deus habitando em nossos corações.
Agora permita-me que lhe pergunte: e se fosse você, a sua vez de sofrer sozinho? O que mais importaria agora? Isto mesmo: alguém cheio de misericórdia.

Boa sorte e boa semana!

DOMINGO RESSUSCITADO

Um amigo me questionou sobre a necessidade dos atos litúrgicos desses dias e o risco que se corre na encenação deles. Estas são questões antigas e de intrigas mesmo entre os cristãos, sobre matar Jesus de novo e ressuscitar no domingo.
Apesar de ter as respostas teológicas prontas para esta indagação preferi não discordar, ao menos por este momento, mas também me questionar sobre a origem de suas indagações. Este intento me revelou que nele partia da observação atenta e do uso de uma razão sincera que não consentia na incoerência, não rara, entre o ato celebrado e os celebrantes, entre as palavras rezadas e seus ritos e o cotidiano de sua comunidade. Ainda mais, não bastassem estes me veio mais um: e se a Eucaristia é Jesus, nós cremos nela como cremos nEle?
É deveras oportuno que isto nos seja questionado hoje, pois a Páscoa do Senhor, o domingo da Ressurreição, é a chave e a resposta para esse triplo enigma: a morte, a ressurreição e a eucaristia. Mas devo concordar. É verdade, Cristo não resuscitou ontem nem morreu sexta passada. Ele é o vivente, “Tem o poder de dar a sua vida livremente e de tomá-la de volta” (Jo10,17). O problema está no risco que se corre em substituir o rito pelo ato e a celebração pela história. Sabemos que a liturgia transforma o tempo, mas não nos enganemos irmãos, atualizar a vida de Jesus vai muito além de fórmulas. Este é o grande dilema dos fieis e portanto da religião: pregar uma verdade que seja tão válida quanto acreditada, tão aceita quanto vivida, tão existencial quanto visível. Se é verdade que Cristo deu a sua vida por nossos pecados (1Cor 15,2), se é verdade que ele esta vivo (Lc 24,5), se é verdade que a Eucaristia é sua presença real (cf Lc 22,19), se é verdade que tudo isso não é encenação, então essa religião cumpriu a sua missão?
Mas e se esse questionamento fosse lançado não à igreja ou à sua liturgia e sim sobre os fiéis e os celebrantes, sobre a coerência dos que pregam? E se apenas pudesse pregar o que se vive, quanto do evangelho se perderia!? Graças a Deus que não se prega templos ou pessoas, mas a Cristo, escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23).
Este dia renovado a cada ano é um convite generoso do Cristo a todos nós em continuarmos a sua missão, assim como ele nos mandou. É só olhar em volta de qualquer denominação cristã com coragem e humildade, e sinceramente precisaremos admitir que temos feito muito, mas muito mal o nosso papel de evangelizadores, considerando a memória dos antepassados e como a fé chegou aos nossos corações. Inclusive, olhando os passos de Jesus a vergonha e a coragem precisam se converter em atitude, em profetismo, coisa tão esquecida nos dias de hoje. Desejo a todos uma feliz Páscoa e que nada turve a luz da ressurreição. Desejo que a vida nova em Cristo não seja mera ilusão do espetáculo de três dias.
A cada ano a Páscoa se renova; a fé retoma novo vigor imbuída de intensa memória do que foram aqueles dias em que a vida de Jesus revelou o seu propósito. A sua ressurreição inaugura uma nova compreensão acerca de tudo, inclusive de Deus. O que é o mundo que vemos e as pessoas, os bens e a sociedade, o culto e o universo diante de um evento dessa natureza. Um homem reviveu dos mortos e subiu aos céus em corpo e alma. Até que voltar da morte ou morrer na cruz não foram exclusivas do Cristo. O que há de tão significativo e diferente na sua Morte-Ressurreição? Sendo inocente paga pelos pecadores o preço de filhos que valemos e reconcilia a humanidade com Deus; ressuscita definitivamente para a glória no céu. Assim ele vive, morre e revive como modelo de quem somos imagem e semelhança.
O modelo de quem somos cópias originais não é algo de ontem, muito menos para amanhã, mas hoje. O hoje de Deus, no qual participamos da sua eternidade. O “já e ainda não”; já agora da celebração, e ainda não do apocalipse. Ele ressuscitou e inaugurou esta vida celeste iniciada aqui, desde a sua passagem entre nós, há mais de dois mil anos. Esse é o lamento do meu amigo, e de tantos outros, o de que nós religiosos ainda não tomamos consciência de sermos novas criaturas, repaginadas em Cristo Jesus.
Aqueles questionamentos podem até parecer agressivos ou ateus, podem até ferir algum fiel ou puritano radical, pode parecer infantil ou pagão. Ele só não é mentiroso; como todo dúvida. É justo que alguém diga: Se não sei, pergunto; se não vejo, mostra-me; se não entendo, explique-me; se duvido, convença-me. Só não me deixe na obscuridade da fé; seja por ignorância ou por inexperiência. Ensine-me ou me mostre. Onde encontro o que creio?
Hoje celebramos isto, uma fé visível em cada seguidor do Mestre, que o conhece porque conversa com ele, escuta e fala, crê e vive; e que as outras pessoas passam a conhecê-lo pela enorme semelhança de atitudes entre ambos, Jesus e discípulo. Que me perdoem os demais cristãos, mas quando os católicos desejam ver Jesus, quando os irmãos não o expressam bem, ou quando apenas a prece solitária do quarto não preenche mais, vão ao seu encontro na eucaristia e, como na última ceia, se alimentam de uma força sobrenatural em prece e comunhão com o seu corpo e sangue, alma e divindade.
Por fim, a missa de cada dia, especialmente as de domingo e solenidades, serão a continuidade da presença do ressuscitado. E a comunidade reunida uma antecipação da festa que será no céu: o retorno dos pecadores. Que seja assim na terra como no céu. E que as paredes dos templos não contenham a fé dos cristãos. Sempre se renove a paixão do Filho do Amor em querer sofrer a dor dos pecadores e desperte também em nós a mesma natureza de filhos do Deus Amor. Feliz Páscoa! Aleluia! Aleluia!

05.04.2015

sexta-feira, 15 de maio de 2015

SÁBADO EM VIGÍLIA PASCAL

Sempre aconselhei sobre a necessidade de exercitar os sentidos e sentimentos em procurar experienciar o momento celebrativo. De que outra forma a fé poderia ser ajudada pela mente que tanto reluta em crê buscando sensações e materialidade no sobrenatural? Eis a oportunidade: sentir e vivenciar os atos litúrgicos. A razão encontrará a resposta de que precisa até mesmo para a morte.
Num certeiro sentido hoje sim é o dia dos finados, o dia de todos os santos. O dia em que os mortos antes de Jesus o conheceram. Hoje é o dia em que Cristo desceu à mansão dos mortos, segundo a tradição católica. Rezam os antigos que todos o esperavam ainda e que depois de descer aos infernos e libertar os pecadores Ele subiria aos céus e abriria definitivamente suas portas.
Este Sábado é Santo. Ele revive a busca incansável do Redentor à procura dos pecadores e dos que não o conhecem. O Filho do Amor confia e vai ao encontro de todo tipo de desprezado. É o Apaixonado, aquele que aprendeu a sofrer a dor do outro e sabe colocar-se no seu lugar. Por isso veio, entrou no mundo, e depois que saiu dele adentrou o sub mundo para, somente depois, findar a sua saga de amor e retornar ao céu e à dignidade que tinha junto do Pai. Não foi por nada que Dante Alighieri, chama de Comédia uma aventura dessas, pois tem um começo triste e um final feliz. Conta a viagem do poeta Virgílio à procura de sua amada Beatriz, no mesmo itinerário de Jesus. Parte da floresta e seus perigos, desce ao abismo dos infernos e seus vícios, escala o purgatório, onde quanto mais esforço se desprende menos se cansa, e chega ao cume do céu.
O dia de hoje é uma descida profunda do fiel dentro de si mesmo, no percurso de sua vida, no tempo "sofrido" da Paixão que dura até o rolar da pedra, do sepulcro vazio. Tudo vira símbolo para a vida de quem crê. Veja se não é isto que falta, ou a atitude primeira de um rompimento com a morte: rolar a pedra e sair do sepulcro em que foi colocado. Se fizesse um paralelo à própria vida não se encontraria alguma semelhança? Tenho pensado que desde o "no princípio era o verbo" à caverna iluminada da ressurreição há paralelos com os textos da filosofia grega. Embora isto seja assunto para outro dia, não tem como esconder que Jesus quisesse revelar o âmago de cada um, e que se o contemplarmos com paciência enxergaremos e descobriremos o que procuramos sobre ele e sobre si próprio.
Hoje ainda é um dia de luto até ao escurecer. Após o enterro a família fica em choque. O filme da vida se projeta na tela do coração. Não celebramos bem este dia se não nos deixamos envolver desse clima de interioridade em que a vida de Jesus passa diante dos nossos olhos. Muita coisa acontece e sequer nos damos conta. Daí a necessidade de certas paradas e profundas descidas na busca corajosa do sentido deste dia para a vida pessoal.
Escureceu, a luz encadeou; é noite, é dia novo. Treva não há que iniba a luz; o breu não sustem o brilho; resplendor e explosão, há fogo e há cor. Fagulha do amor; tocha oscilante nunca extinta; fogueira de toda madeira; flagelo que queima, acesa e inextinguível. Celebramos o alimento, a morte e o fogo; celebramos a bebida, o enterro e luz. Celebramos a hóstia, a cruz e a vida. É necessário que o sol se ponha, que toda luz natural negue o seu brilho e que a escuridão invada em sombras mesmo os campos mais livres. Só quando as velas queimarem a primeira chama tênue e a lua perder seu brilho, "quando acabar a última medida de farinha"  e a esperança for ameaçada, só quando a certeza estiver nas próprias forças e três mulheres partirem com mãos em perfumes para rolarem pedras, quando o caos repousar e o vazio engolir as almas a aurora se renovará, e a luz se fará, o ar soprará, as escamas cairão, o sangue estancará e feridas abertas não mais serão paixão, corpo nu não será sedução, e o novo Adão desposará sua Eva. Nunca mais te chamarão desamparada ou se dirá envergonhada, mas minha querida, minha bem amada, minha preferida (Is 62,4).
A igreja hoje se prepara para o reencontro com o seu esposo. Por isso é uma longa vigília. Mãe de todas as esperas. Vinde às núpcias do cordeiro! Aleluia irmãos! Hoje termina uma semana de sete dias que resume a paixão de um amante até ao altar. Amanhã é o oitavo dia de uma semana que quis ser maior que a criação. Mas a cada dia cabe a sua experiência. Amanhã continuamos! Desde já feliz Páscoa!
04.04.2015

quinta-feira, 14 de maio de 2015

SEXTA NA PAIXÃO DE CRISTO

Dizem por aí que todo mundo já se apaixonou um dia e quem não ainda espera encontrar o grande amor de sua vida antes da morte. Com Jesus não foi diferente, porém sua paixão o levou à morte. Talvez se encontre aqui ao menos o sentido Cristão desse sentimento vivido com atitude. Assim Ele põe em questão até o sentido do sofrimento, coisa que ninguém quer e Ele amou.
A origem da palavra quase explica tudo. Passio é latim e traduz “o que foi sofrido” por resignação, submissão, e Pathe do grego sentir. Sentir o sofrimento parece uma redundância. Talvez prove a Kenosis que S. Paulo fala, também do grego rebaixamento e esvaziamento; sendo Deus se fez homem. Paixão é experimentar a dor. Apaixonar-se é deixar-se ferir. Paixão sem amor é loucura e masoquismo. Por isso o Filho do Deus Amor apaixonou-se e hoje é o dia de sua Paixão.
Contam que logo depois da ceia ele foi ao Horto das Oliveiras. Para nós um morro ou colina, não mais fora da cidade, de onde se avista toda a Jerusalém e ainda hoje se encontram lá pés de azeitona daquela época, talvez porque foram banhadas pelo suor e sangue do Redentor. Naquela madrugada também começou a Via Crucis, noite em claro, de seu inquérito e julgamento até a sua exposição e sentença: Eis o homem. Até onde levaria a paixão de alguém? Qual o preço do seu amor?
Não precisamos aqui refazer as estações católicas da Via Sacra, pois é melhor que cada um hoje refaça sua trilha e redescubra as suas estações, as pessoas, as paradas, e o quanto regou com sangue, suor e lágrimas o chão pisado com a dor. Paixão não é passagem. Passagem é o conceito Hebraico de Páscoa, mas sobre isto escreveremos amanhã. Paixão é percurso enquanto se caminha. Quando se diz que Ele passou no mundo fazendo o bem, fazer o bem é sua paixão.
Apaixonar-se é uma experiência tão mágica que pode traduzir o próprio amor e a felicidade. É a concretização das maiores realizações humanas. Talvez algumas paixões não o sejam por não se inspirarem em Cristo. Refiro-me ao modo como amou e a quem ele amou. Amou a igreja até a morte e morte de cruz. Eis o segredo da Paixão que é amor: uma "passio" continuada, uma dor diferente que virou percurso, caminho trilhado junto, segredo e revelação de uma morte repleta de sentido, vivida, não provocada, aceita, resignada e forte, consciente. Então qual o seu propósito?
Hoje é um dia de silêncio e oração, de jejum. Ele nada disse nem comeu. Ficou fraco, sentiu fome e sede. Caiu e levantou-se três vezes. Mas rezou. Sem silêncio não dá pra ouvir a sua dor, sem oração não dá para dialogar com Ele. Sem jejum não dá para acompanhá-lo até à cruz. Só Ele poderá falar de si mesmo e contar por que o seu amor foi até a dor. Que a brevidade desses dias não tire sua eloquência.
Quando os ministros se deitam no chão no início do ato litúrgico de hoje; quando o crucifixo entra na igreja coberto de vermelho; quando o celebrante tira os sapatos e se ajoelha para o beijo de adoração da cruz; quando o ato de hoje não é nem pode ser missa; quando saem as imagens do Filho e da Mãe das Dores, ao som da matraca e do canto da Verônica. Como entender tudo isso sem silêncio, sem oração, sem penitência!? Cada ato lembra a Paixão de Cristo por cada um dos que o Pai lhe deu e Graças a Deus que Ele disse: "Eu não perdi nenhum daqueles que o Pai me deu!"

Mantenha-se neste dia em vigília como bom veleiro e guardião da fé, em prudência e austeridade, em observação atenta e em constante meditação. Deus lhe conceda uma intuição profunda e um firme propósito em sua paixão: amar, pois hoje é um dia de luto. A cor preta, o altar nu, a escuridão, a prostração, sem instrumentos musicais, tudo lembra morte, mas o sentido deste dia não é a morte sozinha. A leitura longa do relato da Paixão indica o conjunto de ações do Cristo que culminarão em sua tragédia. Só assim os seus algozes, o pecado e os pecadores, contemplarão o fracasso de suas intenções: uma morte temporária e a vitória do amor. Até amanhã!
03.04.2015

quarta-feira, 13 de maio de 2015

QUINTA NA CEIA DO SENHOR

Esses dias um amigo se referiu à Quarta-feira Santa e Quinta Maior, estranhei e expliquei que era o contrário. Depois justifiquei. A semana é santa porque é separada das outras, diferente, única e central. Esta é a semana toda santa. A que santifica as outras semanas. Uns dias são de fato maiores que os outros e os demais dias são tão santos que têm nomes compostos. Não é mais ferial ou sem sobrenome.

Quinta-feira é Santa ou da Ceia do Senhor, Sexta é da Paixão, sábado de Aleluia e domingo de Páscoa. Mas não esqueçamos que desde domingo passado, foi de Ramos, segunda e terça também foram Maiores. Mas por que saber esses nomes novos e diferentes de dias tão comuns e repetitivos ao longo do ano? Porque só uma vez lhes damos esses nomes?

Por que uma vez esses dias foram vividos de uma maneira única por uma pessoa irrepetível. A vida de Nosso Senhor Jesus Cristo é que transformou e santificou cada dia dessa semana com o seu desfecho. Quem dela participa reencontra as intenções de Jesus e experimenta os seus sentimentos (Fl 2,5). Costumo dizer que a liturgia nos leva de volta ao tempo de Jesus. Hoje, por exemplo, é o dia da instituição da eucaristia. A ceia do Senhor, ou melhor, a sua última ceia. Ele não mais degustará outro alimento além deste pão e deste vinho que hoje são o seu corpo e sangue. Nas outras ceias ele não consagrou as sagradas espécies do pão e do vinho; ele não disse “isto é o meu corpo” e “isto é o meu sangue” (Lc 22,19).

A grandeza, importância e santidade de hoje só pode ser percebida em comunidade celebrante e na união das duas missas de hoje: a instituição do sacerdócio e a instituição da eucaristia. Ambas estão ligadas na vontade do Cristo de permanecer conosco fazendo aquilo que ele fez. A primeira renova as promessas de fidelidade, obediência e oração do clero e bênção dos óleos para celebração dos sacramentos. Por isso é muito significativo quando a segunda missa do dia é celebrada nas comunidades. O sacerdote continua a missão de Jesus, a mando do bispo e da igreja, ao lavar os pés da comunidade e distribuir generosamente o Corpo e Sangue de Cristo. Segundo o padroeiro dos padres, São João Maria Vianey, toda uma vida não é suficiente para compreender tão grande mistério de Jesus, nem a vida de um padre nem a de toda uma comunidade.

        Hoje é um dia muito belo e rico de significado para os cristãos, mas antes da meia noite todo ato se encerra com a procissão de fogaréu, quando os homens, no lugar dos soldados, encontram com o Cristo eucarístico recolhido em oração, e os fieis em adoração. Ali as portas da igreja se fecham em sinal de sua prisão. O Mestre nos foi tirado! Logo amanhã a igreja ficará fechada, nua e sem imagens, estejam elas cobertas ou escondidas. Assim seria a religião sem Cristo. Assim é uma fé em que Cristo está morto. Assim é uma igreja sem Deus... vazia e fechada. Mas sobre a Paixão de Cristo escreveremos amanhã...
02.04.2015