Um amigo me questionou sobre a necessidade dos atos
litúrgicos desses dias e o risco que se corre na encenação deles. Estas são
questões antigas e de intrigas mesmo entre os cristãos, sobre matar Jesus de
novo e ressuscitar no domingo.
Apesar de ter as respostas teológicas prontas para
esta indagação preferi não discordar, ao menos por este momento, mas também me
questionar sobre a origem de suas indagações. Este intento me revelou que nele
partia da observação atenta e do uso de uma razão sincera que não consentia na
incoerência, não rara, entre o ato celebrado e os celebrantes, entre as
palavras rezadas e seus ritos e o cotidiano de sua comunidade. Ainda mais, não
bastassem estes me veio mais um: e se a Eucaristia é Jesus, nós cremos nela
como cremos nEle?
É deveras oportuno que isto nos seja questionado hoje,
pois a Páscoa do Senhor, o domingo da Ressurreição, é a chave e a resposta para
esse triplo enigma: a morte, a ressurreição e a eucaristia. Mas devo concordar.
É verdade, Cristo não resuscitou ontem nem morreu sexta passada. Ele é o
vivente, “Tem o poder de dar a sua vida livremente e de tomá-la de volta”
(Jo10,17). O problema está no risco que se corre em substituir o rito pelo ato
e a celebração pela história. Sabemos que a liturgia transforma o tempo, mas
não nos enganemos irmãos, atualizar a vida de Jesus vai muito além de fórmulas.
Este é o grande dilema dos fieis e portanto da religião: pregar uma verdade que
seja tão válida quanto acreditada, tão aceita quanto vivida, tão existencial
quanto visível. Se é verdade que Cristo deu a sua vida por nossos pecados (1Cor
15,2), se é verdade que ele esta vivo (Lc 24,5), se é verdade que a Eucaristia
é sua presença real (cf Lc 22,19), se é verdade que tudo isso não é encenação,
então essa religião cumpriu a sua missão?
Mas e se esse questionamento fosse lançado não à
igreja ou à sua liturgia e sim sobre os fiéis e os celebrantes, sobre a
coerência dos que pregam? E se apenas pudesse pregar o que se vive, quanto do
evangelho se perderia!? Graças a Deus que não se prega templos ou pessoas, mas
a Cristo, escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23).
Este dia renovado a cada ano é um convite generoso do
Cristo a todos nós em continuarmos a sua missão, assim como ele nos mandou. É
só olhar em volta de qualquer denominação cristã com coragem e humildade, e
sinceramente precisaremos admitir que temos feito muito, mas muito mal o nosso
papel de evangelizadores, considerando a memória dos antepassados e como a fé
chegou aos nossos corações. Inclusive, olhando os passos de Jesus a vergonha e
a coragem precisam se converter em atitude, em profetismo, coisa tão esquecida
nos dias de hoje. Desejo a todos uma feliz Páscoa e que nada turve a luz da
ressurreição. Desejo que a vida nova em Cristo não seja mera ilusão do
espetáculo de três dias.
A cada ano a Páscoa se renova; a fé retoma novo vigor
imbuída de intensa memória do que foram aqueles dias em que a vida de Jesus
revelou o seu propósito. A sua ressurreição inaugura uma nova compreensão
acerca de tudo, inclusive de Deus. O que é o mundo que vemos e as pessoas, os
bens e a sociedade, o culto e o universo diante de um evento dessa natureza. Um
homem reviveu dos mortos e subiu aos céus em corpo e alma. Até que voltar da
morte ou morrer na cruz não foram exclusivas do Cristo. O que há de tão
significativo e diferente na sua Morte-Ressurreição? Sendo inocente paga pelos
pecadores o preço de filhos que valemos e reconcilia a humanidade com Deus;
ressuscita definitivamente para a glória no céu. Assim ele vive, morre e revive
como modelo de quem somos imagem e semelhança.
O modelo de quem somos cópias originais não é algo de
ontem, muito menos para amanhã, mas hoje. O hoje de Deus, no qual participamos
da sua eternidade. O “já e ainda não”; já agora da celebração, e ainda não do
apocalipse. Ele ressuscitou e inaugurou esta vida celeste iniciada aqui, desde
a sua passagem entre nós, há mais de dois mil anos. Esse é o lamento do meu
amigo, e de tantos outros, o de que nós religiosos ainda não tomamos
consciência de sermos novas criaturas, repaginadas em Cristo Jesus.
Aqueles questionamentos podem até parecer agressivos
ou ateus, podem até ferir algum fiel ou puritano radical, pode parecer infantil
ou pagão. Ele só não é mentiroso; como todo dúvida. É justo que alguém diga: Se
não sei, pergunto; se não vejo, mostra-me; se não entendo, explique-me; se duvido,
convença-me. Só não me deixe na obscuridade da fé; seja por ignorância ou por
inexperiência. Ensine-me ou me mostre. Onde encontro o que creio?
Hoje celebramos isto, uma fé visível em cada seguidor do
Mestre, que o conhece porque conversa com ele, escuta e fala, crê e vive; e que
as outras pessoas passam a conhecê-lo pela enorme semelhança de atitudes entre
ambos, Jesus e discípulo. Que me perdoem os demais cristãos, mas quando os
católicos desejam ver Jesus, quando os irmãos não o expressam bem, ou quando
apenas a prece solitária do quarto não preenche mais, vão ao seu encontro na
eucaristia e, como na última ceia, se alimentam de uma força sobrenatural em
prece e comunhão com o seu corpo e sangue, alma e divindade.
Por fim, a missa de cada dia, especialmente as de
domingo e solenidades, serão a continuidade da presença do ressuscitado. E a
comunidade reunida uma antecipação da festa que será no céu: o retorno dos
pecadores. Que seja assim na terra como no céu. E que as paredes dos templos
não contenham a fé dos cristãos. Sempre se renove a paixão do Filho do Amor em
querer sofrer a dor dos pecadores e desperte também em nós a mesma natureza de
filhos do Deus Amor. Feliz Páscoa! Aleluia! Aleluia!
05.04.2015
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