quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

EIS A TUA MÃE

Maria, Mãe de Deus
Lc 2, 16 – 21

Sempre será um dilema falar de Ano Novo e da Mãe de Deus numa única festa. Mas desde que não descuremos do tema da esperança, para onde ambas convergem, não será difícil decidir sobre o que enfatizar, uma vez que o recomeço tão falado nesse dia é apenas uma figura diante da vida nova que brota do seio virginal de Maria de Nazaré.

Não é só o ano que recomeça, mas toda história que se conta de novo de um modo diferente. A mesma história, dessa vez, lida com os óculos de Jesus, a saber, na ótica do Evangelho. Assim o broto de Israel não arrebenta a criação. Não é um dilúvio ou o mar que se fecha e afoga a impiedade, não são pragas apocalípticas ou guerras sanguinárias em nome de Deus, mas apenas um rebento que surge miraculosamente, um rei entre os pobres, o filho de Deus nascido de uma mulher.

Em nada a saga de Maria deixa a desejar das antigas e míticas estórias das intervenções dos deuses sobre este mundo. Mas, incomparavelmente o seu desfecho supera inclusive a expectativa das profecias. Mesmo as Escrituras não diziam que o Messias seria Deus encarnado. Jamais se imaginava que em Jesus também se realizariam os anseios míticos contados desde os primeiros povos que habitavam esta terra. Esta esperança, de Deus entre os homens, já havia sido superada pelas razões e investigações humanas. Porém, Deus não nos trai jamais; tudo que está escrito nas estrelas Ele ainda levará a termo.

Penso que o dogma da Mãe de Deus seja o que menos precisava de um decreto ou decisão documental, posterior àquela citação do próprio anjo. O relato evangélico, em muito, deveria bastar à religião e prevalecer sobre a teologia e não ser apenas uma referência, ainda que sua fundamentação mais preciosa, mas, em inúmeros casos, deveria bastar por si próprio. Por que ainda é necessário afirmar algo tão claro e em duas passagens, do evangelho da infância, como anunciou o anjo Gabriel: “o ente que nascerá de ti será chamado filho do Altíssimo” (Lc 1, 35) e a admiração de Isabel: “a que me vem que a mãe do meu Senhor venha me visitar?” (Lc 1, 43)

Sei bem que certos contextos nos forçam a reafirmar verdades absolutas que não precisariam ser questionadas não fossem a incredulidade alheia e suas maledicências em negar aquilo que lhes obriga a seguir. Por não aceitarem a amplitude da mensagem e da Pessoa de Jesus, certos tolos atentaram contra a Palavra de Deus. Entretanto, como a verdade é a busca última da razão e a soma de suas descobertas, era inevitável que, debaixo de tantas dúvidas, chegassem à derradeira afirmação, e ao mesmo ponto de partida, de que se Maria é a mãe de Jesus, se Jesus é o filho de Deus, se Jesus e o Pai são um (Jo 10, 30), se quem O vê, vê o Pai (Jo 14, 9), se Ele é Senhor e Deus (Jo 20, 28), seria trair a inteligência não entender a maternidade divina de Maria e não afirmar que ela é a mãe de Jesus Deus, portanto a mãe de Deus Jesus.

Tudo o que se diz de Maria se afirma também de Jesus. Se lhe chamamos de mãe de Deus é porque Jesus, seu filho, é Deus; se lhe chamamos de Imaculada é porque ela, cheia do Espírito Santo (Lc 1, 28), não continha pecado; se lhe consideramos Virgem é por que sua concepção é obra do Espírito Santo e não concurso de homem algum (Lc 1, 34); se lhe proclamamos Assunta aos céus é porque não se manchou a arca do Salvador, nem poderia ter se corrompido o corpo que gerou a vítima de expiação dos nossos pecados (Cf. 1 Jo 2, 2). Assim, incansavelmente falaríamos de Maria, Santíssima, reconhecendo nela os dons de Deus e a sua bem-aventurança: “Feliz és tu porque creste” (Lc 1, 45). A virtude de Maria é ser como as matriarcas que a precederam e foram preparando a imagem daquela que lhes daria pleno sentido, ser a mãe do Messias esperado.

Controvérsias à parte, ainda merece uma atenção especial os diálogos entre Jesus e sua mãe. São como que já o cumprimento da última profecia sobre si mesma, de que todas as gerações a proclamarão bendita, (Lc 1, 48) segundo o seu canto do Magnificat. Ainda na infância, retornando da Páscoa em Jerusalém, Jesus lhe revela ter aprendido a lição de casa: cuidar das coisas do seu Pai (Cf. Lc 2, 49). Já adulto não resiste à intervenção de sua mãe em Caná da Galileia e faz a vontade dela, ainda que a Sua hora não tenha chegado (Cf. Jo 2, 4). Toma o exemplo de sua mãe no cumprimento da vontade do Pai para demonstrar qual é o verdadeiro parentesco ou modelo de seguimento que Ele espera dos Seus discípulos: “Minha mãe e meus irmãos são todos aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a praticam.” (Lc 8, 21) E, por fim, entregando a vida também entrega a própria mãe ao discípulo que mais amava: “Mulher, eis ai o teu filho.” (Jo 19, 26)

Jesus chama Maria de mulher na Galiléia e em Jerusalém, no início do seu ministério público e no final dele, para restaurar a imagem desfigurada por Eva. A maior prova de amor também estava sendo dada por aquela que oferecia na cruz o seu maior sacrifício. Penso também que nas entrelinhas de “Prova de amor maior não há do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15, 13) também poderíamos ler: ‘darei quem me deu amor que me deu a vida’, assim o amor é generoso ao extremo, pois nada ficou para Si, nem na vida, nem na morte. Jesus não deixou ninguém sozinho: “Eis aí a tua mãe. E daquela hora em diante o discípulo a levou para casa.” (Jo 19, 27) Sem Ele, estamos uns com os outros e “Onde dois ou mais se reunirem em meu nome ali estarei.” (Mt 18, 20) Assim também se realiza o seu sonho de que sejamos um assim como o Pai e Ele são um (Cf. Jo 17, 21).

A esperança não se desfaz nas dores da nossa vida, ainda que em seu desfecho mais dramático. A esperança se renova a cada fim, assim como a verdade vem à tona a cada negação de suas afirmações.  Em Maria recomeça a história de um povo, ao se cumprirem as suas profecias.  Essas promessas de Deus reinauguram novas esperanças para outros povos, dentre os quais fomos alcançados. Assim nos contagiam e passamos a fazer parte de outra família, cultura e religião. Somos todos filhos de Deus, irmãos de Jesus, portanto filhos de Maria, desde quando ela aceitou ser coberta pela sombra do Espírito Santo (Cf. Lc 1,35) e gerar o primogênito, primícia da nova humanidade (Cf. Cl 1, 15).

Desejo que no ano novo tudo em sua vida ganhe novo sentido e que consiga terminar antigos projetos para começar outros novos e esperançosos. Que este seja o melhor ano da sua vida!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto – SE, 01.01.2016

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

AMOR PRA RECOMEÇAR

Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José
Lc 2, 41 – 52

A família é um patrimônio inalienável da humanidade. É a forma mais original da atração mútua que exerce cada um sobre o seu semelhante. É a prova mais contundente de que a vida é convivência. Qualquer conceito ainda se mostra uma tênue tentativa de dizer o que é a união entre as pessoas.

Se quiséssemos assinalar onde nasceu a instituição da família cometeríamos diversos enganos e erros, não apenas de datação ou registro, científicos, sociais e antropológicos. Cometeríamos erros contra a religião se a definíssemos apenas como uma criação sua. Mas talvez pudéssemos acertar se disséssemos que a família precede a religião, ainda que encontrasse nela o seu sentido mais sublime.

Ao ser comparada com a vida divina, do amor entre Deus Pai e Deus Filho, ou ao se tornar o meio pelo qual Deus Filho entra no mundo, a família é entendida na religião no âmbito da  plenitude do plano divino da criação e salvação. Aquilo que supostamente Adão e Eva formaram para a base familiar, os patriarcas e as matriarcas evoluíram até o seu clímax na família de Jesus, Maria e José.

Mas Deus escolheu uma família em construção. O casal de Nazaré não era uma família ainda, nem eram pessoas amadurecidas. Pelo contrário, José, muito provavelmente, já vinha de uma família com filhos e viuvez. Já criara sua estabilidade profissional, pois era conhecida a sua profissão, e ainda possuía dote para outra esposa. Quem sabe procurava uma companheira para terminar de cuidar de seus filhos. Sua noiva, Maria, era jovem, inexperiente, apesar de ser provada em situações em que poucos suportariam, a exemplo de toda a sequência de fatos a partir da anunciação do anjo até a fuga para o Egito, inclusive, no resguardo do parto.

Decididamente a família de Nazaré, berço de Jesus, foi uma família conturbada, mesmo que ninguém ouse chamá-la de ‘problemática’. Não foi uma família comum; sua paz sempre esteve ameaçada; logo a viuvez alcançou Maria; a morte sempre os acompanhou e orientou o destino de todos. Há muito mistério na síntese da família de Jesus, muito mais do que possamos descrever nesta mensagem do evangelho.

Família sem conflitos não é humana. A trama dos entendimentos está presente na vida pessoal, pois os conflitos de interesses residem na luta de cada um em decidir sobre sua inteligência ou vontade. Saber e querer já constrangem individualmente, ademais intrigaria aos que habitam sob o mesmo teto. Família que fosse entendida apenas como união de corpos trairia a palavra que diz “Os dois serão uma só carne” (Mt 10, 8). Tal conceito é ainda tão amplo.

De igual modo ‘ser uma só carne’ pode ser entendida de maneira corporal, na união da cópula sexual, bem como de maneira simbólica e espiritual. Não pretendo me deter sobre a sua realidade sexual e genital, uma vez que já demanda tanta polêmica de gênero no conceito de família. Sem dirimir esta há outra realidade que merece universal importância. A família é um corpo único. Talvez esta seja uma dimensão que mereça mais atenção que as polêmicas. Enquanto se discute se há família entre homossexuais, pode ignorar que todos, indistintamente, nascemos de uma família. Esta é a realidade mais proeminente. Arriscaria dizer que cada ser humano tende à família porque ela é a estrutura humana para qual se dirigem todas as nossas aspirações, ou melhor, a finalidade de toda ação humana. O homem age em razão da família.

O parágrafo acima é uma ousadia conceitual, reconheço. Mas o leitor observe comigo se o jeito de ser família de cada um não está presente nas demais realidades de sua vida, em que está presente. Lembre-se daquele ditado “costume de casa vai à praça.” Talvez ele queira dizer justamente isto. Mas me refiro a algo além. Não é que levemos para a sociedade os costumes familiares, mas transformamos em familiar tudo em volta de onde estamos presentes.

A amizade e a inimizade, a concórdia e a discórdia, o amor e a paixão, o desprezo e a separação, a união e a tolerância ou o ódio e a disputa, não há experiência social que assim o seja antes de ser familiar ou que suas causas não envolvam situações muito próximas do parentesco. A nossa tendência em estender a estrutura familiar à sociedade anseia a uniformidade e hereditariedade. Os modos de criança e crises da adultez determinam de qual tipo de família viemos e qual o tipo que estamos construindo.

O que Jesus fez ao ingressar na sua família veio provar que ‘quem sai aos seus não degenera’. Ele mesmo diz que tudo o que aprendeu de Seu Pai Ele nos ensinou (Cf. Jo 8, 26); várias vezes Ele Se refere a situações que aprendeu em casa, tipo: “minha mãe e meus irmãos são todos os que fazem a vontade de meu Pai” (Lc 8, 21) e “não se faça a minha, porém a Sua vontade seja feita” (Lc 22, 42). Vejamos se não foi esse o Seu projeto: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 15, 12), ou se preferir, transformar em Sua família todas as pessoas da Terra.

Esta tarefa, familiarizar a existência, é algo tão espontâneo que o leitor mais distraído poderia discordar de uma visão tão universalista. Não precisa concordar, todavia vale a pena se perguntar se não mede as pessoas e o ambiente a partir das próprias realidades, se elas estão em acordo e se trazem os mesmos confortos e seguranças de casa. Esta é uma divina aventura que precede a criação. No seio da Santíssima Trindade aquilo que a família seria já era gestada. Desde que os homens se unem às suas mulheres a família é o que é: um só corpo bem unido. Assim como queremos que todo grupo de pessoas seja!

Desejo que você seja família, “que você tenha a quem amar e quando estiver bem cansado ainda exista amor pra recomeçar.” (Roberto Frejat)

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto – SE, 27.12.2015

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O NASCER DA VIDA E DA LUZ

FELIZ NOITE DE NATAL
Lc 2, 1 – 14

É Curioso como a maldade dos homens não tem vida própria. César augusto publicara um recenseamento para vasculhar a vida dos judeus que terão seus filhos recém-nascidos assassinados pelo medo de que se cumpra a profecia que destrona sua realeza e divindade. Mas é justamente o que apressa a acontecer. Em Belém, antes que seus pais cheguem a Jerusalém, Jesus nasce (Cf. Mq 5, 2; Mt 2, 6). O mal no mundo sempre foi uma atitude secundária à vontade de Deus, outra atitude que não aquela esperada. Uma decisão pessoal sobre o curso natural das coisas. Se o mal modifica, ele apressa a vontade divina.

Não há plano humano que atrapalhe a vontade última de Deus e se Ele consente em alguma adversidade é porque em nada ou infimamente pode prejudicar os seus planos e o resultado final do que nos espera (Cf. Pv 16, 1). Esta já deveria ser uma certeza absoluta entre nós, de que entre o livre arbítrio e o destino há a vontade dAquele que criou tudo o que há.

A Paixão de Cristo seria o fenômeno mais dramático da saga humana e a sua ressurreição a maior proeza de Deus. Isto porque pensamos todas as coisas pelos nossos limites e medidas, a partir das nossas imperfeições. Aquilo que é impossível para nós se torna maravilha de Deus. Negamos assim a palavra de Jesus de que faremos “obras ainda maiores” do que as Suas (Jo 14, 12). Se pensarmos no todo da obra de Deus veremos a natureza, o mundo, os planetas, as galáxias, o universo, e cada vez mais ficamos menores diante de tudo isso, enquanto Deus se revela ainda mais criador de todas as coisas.

Um nascimento de um menino, a coisa mais comum e desejada em uma família judia no tempo de Jesus. Ali, naquela semente brotada de homem continha o projeto inicial e cabal, a síntese da criação e o genoma santíssimo da vida divina. Ali envolto em panos, como que escondido ou protegido. Haverá sempre algo de velado em toda eloquência dos fenômenos bíblicos, assim como não se pode entender tudo de nossa vida, ainda que especulada.

O nascimento de Jesus é um misto entre o céu e a terra, entre a pobreza e a realeza, entre o material e o espiritual, porque sua vinda quer explicar a todos o que ainda não entendemos. Seu nascimento é a iluminação da humanidade, reescrevendo a história e redimensionando a evolução das espécies. Nossa história se escreve contando a trajetória do homem ao seu Deus, enquanto evoluímos em espírito e em verdade (Cf. Jo 4, 23).

O marco zero do Natal não é cronológico, pois as Eras já estavam sendo contadas. A coorte angélica e os pastores que deixam seus rebanhos, sem temer a solidão daquela noite, indicam que o mapa dos sábios do oriente não é somente uma cópia cósmica do curso das estrelas, nem seus presentes compensam a longitude da viagem. Trazer algo de valioso ou apenas seus bastões pastoris não significa muito, se antes seus corações não estivessem rendidos ao momento presente.

Pois bem, o que é o tempo presente senão a experiência concreta do momento que não se limita ao segundo, hora ou dia da expectativa? O tempo presente é o agora em que estamos, em que você lê este texto, linhas após, mas com ele inteiro em seus pensamentos, perguntando qual a mensagem desta vez.

Explico, o agora de Deus, o “hoje se cumpriu esta passagem das Escrituras” (Lc. 4, 21), que Jesus disse na Sinagoga de Cafarnaum, quando leu o livro do profeta Isaias, mas que poderia dizer a cada segundo de seus dias temporais. O agora de Jesus, a chegada de Sua hora (Jo 12, 23), a plenitude dos tempos (Gl 4, 4), pode ser lida, e esta é a nossa meditação de hoje, desde a concepção de Jesus até o “Eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos.” (Mt 28, 20) O tempo de Jesus é o presente eterno.

Eu arriscaria dizer que a nossa verdadeira compreensão do Natal, antes de ser a Salvação, algo a se cumprir em definitivo na Sua Paixão, Morte e Ressurreição, é estar e ser presente, viva e verdadeiramente, também nós, onde estamos. Não é natalino estar sem ser, ser sem estar ou nem ser nem estar onde nos localizamos fisicamente. Não é natalino que Ele venha ao nosso encontro e ‘saiamos’ de cena.

Talvez esta seja uma mensagem de Natal estranha, em dizer que é possível habitar um espaço entre outros sem ser de verdade. Mas toda vez que o mundo em volta não for assumido pelos que aí estão eles não estarão de fato aí, ali ou acolá. Melhor explicar, então. A alienação, a suprarrealidade ou a virtualidade das relações desencarna os nossos natais. Nascer é estar e ser presente no mundo entre as pessoas fisicamente, mas também conscientemente e emocionalmente, afetivamente, portanto concretamente.

Jesus quis vir ao mundo, pois Deus não se contentou em ouvir o clamor do seu povo (Ex 3, 7). Jesus olhou com muito amor (Mc 10, 21) e carregou sobre Si as nossas dores (Is 5, 3), além da onisciência divina; quis caminhar no meio do seu povo, passar entre nós fazendo o bem (At 10, 38), além da onipresença divina; quis trabalhar (Jo 5, 17) e chorar (Jo 11, 35) além da onipotência divina. Tudo isso para que a salvação fosse vista também com olhos humanos (Lc 2, 30) e não apenas na esperança e sobrenaturalidade da fé.

Nascer quer dizer ingressar no mundo pela luz da vida que segue. Todos nascem, cada um em seu contexto. Infelizmente alguns de nós, de maneira traumática, teve interrompido seu nascimento. A vida, todavia, continua em outra luz, mais reluzente que a do natal, a saber, a luz eterna que não se extingue (Ap 21, 23).

Portanto o Natal de Cristo é bem celebrado, revivido, se não se restringe a um olhar para trás, mórbido e melancólico, omisso e lamentoso. Celebra o Natal de Cristo quem percebe que a própria presença no mundo, sua vida, é um dom de luz e decide também sentir com os que partilha a existência e divide os espaços. Celebra o Natal quem não está aí apenas como um autômato virtualizado, presente em todas as redes sociais menos com aqueles à sua volta, os de carne e osso possíveis de serem abraçados e beijados com o sorriso de Feliz Natal!
Desejo que esta noite resplandeça de luz em sua vida, redescubra o bem de estar com os que ama e de ser mais e melhor com aqueles que não te amam ainda. Feliz Natal!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto - 24.12.2015
Pe. Adeilton Santana Nogueira


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

SEJA FEITA A VOSSA VONTADE

João 18, 33b – 37
FESTA DE CRISTO REI DO UNIVERSO

A Festa de Cristo-Rei foi instituída pelo papa Pio XI, em 1925, para proclamar uma verdade absoluta em nossas vidas. Cristo é rei não apenas porque somos seus súditos, mas porque descendemos de sua realeza, somos um povo real, santo e sacerdotal. Corre em nossas veias o sangue da realeza a qual participamos. Nossa presença no mundo é o sinal de que a coorte de Jesus se estende assim na terra como no céu, onde Sua vontade seja feita.

A declaração da realeza de Jesus se dá em meio ao seu processo de condenação, naquela primeira via ‘judiosa’, em que os seus o levavam ao julgamento tirano dos homens. Respeitando as leis de sua época, os sábios de Seu tempo não puderam julgá-Lo e O entregaram aos romanos. Assim Seus contemporâneos lavaram suas mãos no pranto de Raquel chorando pela morte de seus filhos; no pranto dos inocentes e não nas águas de Pilatos.

33 Pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos Judeus?”

Lemos esta perícope no Ato da Paixão, naquela Sexta-feira Maior, da Semana Santa. Neste ano de 2015, em especial, a mesma semana em que começamos a escrever estas reflexões do evangelho. No caso, há uma ligação estreita em toda segunda parte do Tempo Comum, intervalado pela Quaresma e Páscoa. O fio condutor entremeado alinhavando toda a vida de Jesus e nossa é o título de seu féretro proclamado na estaca do Gólgota: Jesus Nazareno Rei dos Judeus. Sentença mais do que justa por causa dos nossos pecados.

Acaso foi Ele quem pecou? Embora semelhante a nós em tudo menos no pecado, se fez pecado para nossa salvação. Jesus é o único que pode tirar do mundo e do homem aquilo que Adão se rendera, enquanto primícia. O ser humano e Jesus participaram de algo que não lhes é próprio, mas passou a ligá-los íntima e definitivamente. Assim como o pecado toca o homem Jesus decidiu tocar os pecadores, fazer parte de sua vida e ensinar-lhes o caminho de volta.

Jesus não procurou ‘de quem é a culpa’, mas a assumiu em si mesmo a ponto de carregar a cruz em seus próprios ombros. Suas costas riscadas pela navalha dos gatos romanos, chicotes com lâminas em suas sete tiras de couro, tornaram-se a agulha do travessão da cruz; uma balança melhor equilibrada do que aquela da justiça vendada. Esta Jesus também a nivela por trás. Para Ele não importa o peso, ele tem que ser carregado, mas por aquele que faz a justiça, não por quem lhe pesa as partes.

As medidas econômicas, contábeis, morais, políticas e até religiosas de Jesus já se mostraram deveras diferentes das nossas, não seria diferente com o seu modo de ser justo juiz. Ele tira a culpa, carrega o pecado, assume sozinho o peso, a responsabilidade e a consequência, como se fosse dEle a culpa de quem erra; como se fosse do criador a culpa de Sua obra, dos pais os erros dos filhos e das leis o seu não cumprimento. Creio que haja muito o que dizer ainda sobre esse modo de agir do Cristo que nós não entendemos ainda. Qual é mesmo a sua lição em tudo isso?

34 Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo, ou outros te disseram isto de mim?” Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?”

Há uma tentativa de desvio das atenções e envolvimento político nessa trama de denúncias e esquiva dos acusadores. Quando não há materialidade das provas também não há personificação da vítima. Tentam criar em Jesus a figura da culpa de todos e de que é culpado de tudo. Assim fica fácil de apontar para Ele, já que não falta do que acusá-Lo.

Para Jesus sempre foi importante se o que dizem dEle é algo pessoal ou noticioso. Se é uma experiência do interlocutor com quem dialoga ou se este fala do que outros lhe disseram. A opinião alheia pode até se fundamentar em experiências concretas, mas Jesus questiona o testemunho dos outros como algo pouco aceitável se agora estão juiz e réu. Curioso que o réu é quem menos se escuta nos tribunais, ainda que aos pés da cruz.

36 Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”.

Note o leitor a insistência de Jesus em declarar que seu reino não é deste mundo. Não creio que dizia isto apenas a Pilatos. Que o leiam os práticos e os idealistas; não se leia, todavia, assim no céu como na terra. A ordem das coisas é outra. Não pense o amigo que alguma realidade presente nessa terra poderá ser comparada ao que nos espera no céu. Doce ilusão achar que conseguimos fazer o que Jesus não fez ou que conhecemos alguém tão santo quanto Ele. Esta consciência das coisas levava Jesus a sempre ensinar além das aparências e a sempre elevar o pensamento e os corações ao alto, para que a nossa inteligência e o nosso coração estejam em Deus. As realidades precisam apontar para o céu, mas não o são aqui. Esta tensão é a própria transformação das coisas, um processo lento e contínuo.

Imagine comigo. Não é verdade que todas as coisas que fazemos tem uma finalidade? Que tudo o que procuramos e as pessoas com quem lidamos, nós lhes damos um objetividade, um para quê, um por quê, às vezes até uma destinação ou temporalidade, até onde iremos com isso e até quando? Agora pense comigo. E se esta finalidade última de todas as coisas fosse o céu e fosse agradar a Jesus? Então se perguntássemos diante de tudo que nos rodeia se isso entra no céu comigo ou se Jesus faria assim no meu lugar? Qual seria a resposta? Não me diga! Acho que precisa ler este parágrafo de novo.

37 Pilatos disse a Jesus: “Então tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”.

Uma vez li em algum santo, interpretando que somos “um povo de sacerdotes, profetas e reis”, que “somos chamados por Deus a oferecer no altar do coração o sacrifício (consagração) da nossa própria vontade” e que esta seria a vida sob a realeza de Jesus. De fato é algo muito pessoal o modo como cada um oferece esta consagração (dedicação) a Ele. No entanto, é pouco provável que, na busca do que Lhe agrada, façamos coisas tão diferentes e queiramos algo um contra o outro, do contrário ficará claro que nos enganamos e não O agradamos. Pense nisto! Não sou eu nem você quem diz o que Lhe agrada, mas Ele mesmo fala de Si. Precisamos ouvi-Lo mais, logo, citá-Lo mais também quando quisermos falar da Sua vontade.

Se precisamos restaurar todas as coisas em Cristo também precisamos nos perguntar se Ele faria assim como estamos fazendo. Fica a dica!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
22.11.2015

Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 19 de dezembro de 2015

ALEGRIA DE ALGUÉM

Lucas 1, 39 – 45
4º DOMINGO DO ADVENTO

Tudo tem um fim. E que bom que o tem! Mesmo o tempo termina. O Tempo é Cronos, o deus mítico filho do Céu estrelado e da Terra. Destronou o pai e passou a engolir os filhos para não ser destronado também; somente Zeus escapara e libertara os irmãos. É sábia a mitologia de Homero quando conta que a história do pai do tempo era cheia de medo e disputas e que somente o seu exílio trouxe a imortalidade aos seus filhos. Enquanto se vive na Era de Cronos tudo é medido com mesquinhez e desconfiança.

Cronos também engolira Kairós, pois ele discordava de seu pai e defendia um tempo oportuno para cada coisa, o momento certo, a oportunidade que chega e passa, aquela hora que é única. Mesmo que dependa das horas, Kairós captura o tempo e o torna exclusivo. Era isso que Cronos odiava: não ser dono de tudo.

De Sêneca, que ensinou a S. Paulo, à filosofia existencialista e escolas espirituais, os defensores do tempo que passa, deixando de lado os mitos e inspirados no sol que renasce todos os dias, chamam de quotidie morior, a morte do cotidiano. Heidegger ou Edith Stein poderiam ter dito: “Todos os dias enfrento a morte.” ( 1 Cor 15, 31) Se tudo passa, tudo tem um novo começo. Eles defendem que este momento deve mesmo passar e que surja outro. A doutrina do quotidie morior inspira o entusiasmo e a esperança. Como diria S. Tereza de Jesus: “Tudo passa, só Deus basta!” Pois que venham novos “hoje”, novos momentos depois que estes nos deixem, graças a Deus!

Ainda mais do que foi dito acima, o tempo que estamos falando nesses domingos é outro. O Advento é um tempo cristão além do mítico ou filosófico. Aquele que há de vir, não se sujeita ao tempo que se mede nem ao tempo que se experimenta e passa. Não é algo externo que lhe dá sentido, mas Ele mesmo é quem significa o instante que se mede e a eternidade que não se conhece.

O evangelho de hoje se dá num contexto esperado e é relatado com imagens já conhecidas do povo bíblico. Lucas não era jornalista, mas médico. Mesmo que o fosse contaria essa história de forma que o povo a pudesse ler. Assim os evangelistas escreveram suas notícias acerca de Jesus, compondo um cenário comum a todos, mas apenas compreensível pelos que se contextualizavam. Assim o Espírito escrevia, a várias mãos e naquele tempo, palavras de vida eterna que evocavam antigas tradições e esperanças que gritavam aos ouvidos dos presentes: “Hoje meus olhos viram a Salvação”.

Os relatos evangélicos têm uma solenidade de construção, uma introdução, estrutura e estilo próprios. Eles têm localização temporal, pessoalidade, geografia, psicologia, moral e política, mas sobretudo teologia. Não se leia um texto sagrado buscando referências técnicas precisas sem o dado da fé e do recurso das alegorias e imagens. Sem elas não se poderia construir uma cena que falasse ao leitor além das letras e do tempo. O simbólico se insere no mundo dos sonhos, dos anseios e das reflexões. É por isso que até o nome de Maria se assemelha ao das grandes mulheres bíblicas como a irmã de Moisés e a sua história repagina outras tantas sagas matriarcais do Velho Testamento.

39 Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa,
dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia.

Maria é de Nazaré da Galileia e vai a Isabel na Judeia, atravessando um deserto montanhoso. Sujeita a ladrões, feras e ameaçada de ser apedrejada pela gravidez sem marido; ela se apressa. A distância entre as cidades é de mais de 130 quilômetros e será feita mais uma vez. A próxima será quando o recenseamento obrigar José e Maria a se dirigirem a Jerusalém. Daquela vez não dará tempo de chegar e Jesus nascerá em Belém. Muitos pregadores se detiveram nas pressas de Maria, sem perceber outros temas tão importantes como a união política das famílias e tradições entre Galileia e Judeia, dominadas por Roma; a travessia a pés secos no mar de areia; a solidão, coragem e a maturidade de uma adolescente. Reservo-me, todavia, apenas em apontar ao leitor esses temas e reflexões possíveis.

40 Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. 41 Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo.

O tema das alegrias messiânicas já se descortina. A alegria é a saudação do anjo: “Ave-alegra-te!” Maria não chega sozinha, já está grávida, e o motivo de sua alegria vai com ela. É portadora da esperança, sua cumpridora e transmissora. Neste dilema temporal o sobrenatural se revela. Todos estão cheios do Espírito Santo. Quem tem Deus contagia, exala graça, pois transborda Aquele que não se conteve nos céus, nem se aprisionará nos corações, ainda que puros.

42 Com um grande grito, exclamou:
“Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!”

A primeira parte desta saudação é trazida do Cântico da juíza Débora à vitória de Jael, mulher responsável pela libertação de Israel quando derrota o general Sísera, o opressor, com as próprias mãos. (Jz 5,24 – 27) Mas “o fruto bendito” é o “Filho do Altíssimo”. Como não saudá-la, ó Maria? Como não reconhecer em sua história a esperança de um povo, desta vez sem violência? Como não amar o honrar aquela que acreditou? Como não gritar: “És bendita”?

43 Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?

Aqui está outra saudação antiga. Desta vez reconhecendo a semelhança entre a Arca da Aliança, que continha uma porção do maná do deserto e as duas tábuas da Lei e Maria, mãe de Jesus. Aconteceu que o Rei Davi teve medo de que a Arca ficasse com ele e exclamou: “Como virá a Arca do Senhor para ficar em minha casa?” (2 Sam 6,9) E a mandou para casa de Obed-Edon, com quem passara três meses abençoando a sua família. A Arca sempre foi venerada e temida por ser a santa presença de Deus no meio do seu povo.

44 Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos,
 a criança pulou de alegria no meu ventre.

Há outros paralelos entre a passagem de Davi e esta de Isabel. Até o júbilo de João pode ser comparado às danças e saltos do Rei na presença da Arca. (2 Sam 6, 5.14) São a descendência de Jesus e seus precursores dando sinais de que o tempo é este e de que o esperado já se cumpre. Já, mas ainda não! Ainda precisa se atualizar e deixar de ser alegoria, simbologia, comparativos e se tornar realidade no aqui e agora da história de cada um. Enquanto assistirmos ao espetáculo do Natal ou o protagonizarmos com fetiches e fantasias pessoais ele não será a presença tão esperada, mas apenas a representação dela, uma quimera bem contada, uma peça bem encenada, riscos em que incorrem as festas religiosas engolidas pelo desfecho do fim de ano, pela gana do comércio e comoção dos amigos. Não estamos celebrando ou comemorando o próprio projeto, lembre-se disto!

45 Bem-aventurada aquela que acreditou,
porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”.

Eis a diferença: crer. O cumprimento da promessa não diz respeito à fé. Ledo engano achar que Deus precisa que se creia. Não é a fé que desperta o poder divino, senão por vezes o reclama, mas o poder emana dEle como o aroma das flores. A diferença é que quem crê percebe o milagre acontecer e pode participar dele; quem não crê não o testemunha, embora ele ocorra um palmo diante do nariz.

As luzes piscam e as árvores frutificam estrelas; presentes abertos e comida sobrando; muita companhia e confraternização. Há mais luz, cor, fartura e pessoas. Todos estão felizes!Todos? Pois antes do Natal procure um triste e lhe faça feliz. Boas Festas!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto – SE, 19.12.2015

sábado, 12 de dezembro de 2015

ESPERANDO E REMANDO

Lucas 3, 10 – 18
3º DOMINGO DO ADVENTO

O Advento é um tempo dentro do tempo. Celebra o ingresso de Cristo no mundo e na história da humanidade. É outra forma de expressar a métrica de Deus, extremamente diferente da nossa. Definitivamente o tempo de Deus não é o nosso (Cf. Eclo 3, 1 – 8). Mil anos para nós é como um dia de Deus que passou (Cf. 2 Pd 3,8).

Como não se perder nas horas de Deus? Nosso tempo é tão limítrofe! Quando pensamos nas horas elas já se passaram. Tudo que fazemos é passado. Até esta leitura já se foi antes que você a termine de ler. Para mim que a escrevo, quando você a ler, já terminei há tempos de escrevê-la! Quem decidir medir o passar do tempo se prepare para uma frustração. É que o tempo das horas é contraditório. As horas que passam não param. Logo, o curso das horas dá a impressão de que o tempo continuado é um só ininterrupto. Por isso, as mesmas pessoas que dizem “as horas não passam” podem também se admirarem “como as horas passam rápido”.

A fruição do tempo é como a correnteza de um rio; a depender da sua fluidez temos a impressão de celeridade ou de estagnação. Não se engane o observador, a densidade de uma corrente não está na altura de suas ondas, mas na força do leito; nem as margens nem o vento que lhe agita por cima, mas na turbulência do encontro e no volume do deságue. É para onde o rio se dirige, a sua inclinação e a sua profundidade darão velocidade para a sua confluência.

Com as pessoas não seria diferente. O que nos move é o destino; não aquela entidade incorpórea, fantasmagórica da sorte, que atormenta a todos com as suas determinações viciosas. Destino é o local para onde nos dirigimos e que deixa de sê-lo quando chegamos. Não se iluda o amante que o seu destino é o enlace; não se engane o profissional que o seu destino é o trabalho; não vacile o piedoso que o seu destino seja o Céu. Se assim o fosse seriamos os mais fracassados dos investidores.

O que espero é que haja algo além do que dizem ser o destino. O que entendemos por destino, se for a ideia de meta a ser alcançada, superada a ideia de sorte hipotética, é a chegada. Um novo recomeço; a continuidade da vida e, portanto, do tempo. Mesmo neste mundo temporal o amante precisa continuar após o enlace; o profissional necessita aperfeiçoar-se e o piedoso sabe que Deus é o motivo pelo qual ele vai ao céu.

Entendo que aquilo que nos atrai é ainda maior do que a própria atração. Sejam quais forem as categorias com as quais definimos nossa existência e seus anseios, seus sonhos e planos, ainda assim sua realização se mostrará algo mais belo, mais realizador e, portanto, jamais nos contentaremos com as paradas. Este é o ser humano: a cada chegada um recomeço, mesmo no céu.

O Advento é este recomeço, mesmo para quem não chegou nele ainda. Para quem ainda não se preparou, não aplainou seu coração, as semanas percorrem o seu curso normal, vão diligentes desaguar na noite bela. Levados pela correnteza do tempo litúrgico todos desembocaremos no encontro do Natal. É inevitável que isto aconteça, até porque já aconteceu há dois mil anos. Nós é que estamos navegando nas águas por onde milhões já trafegaram. Vamos irmão, destemidos em águas profundas, barcas singrando rio tão denso, rico em seus afluentes que o enchem de mais embarcações, todos nos destinamos ao mar, à praia, ao porto. Portanto alcem as suas velas ao vento! Força nos remos!

10 As multidões perguntavam a João: “que devemos fazer?” 11 João respondia:
“Quem tiver duas túnicas dê uma a quem não tem; e quem tiver comida faça o mesmo!”

Não se viaja com muito porque há muito que conquistar no destino. Esta é a tábua do juízo final: “(...) Estive nu e me vestistes, com fome e me destes de comer” (Cf. Mt, 25, 35s), regra de ouro da verdadeira religião (Cf. Tg 1, 27); o programa inicial do Batista, o seu ‘primeiro mandamento’ ou chamem como quiserem. Vestir-se cobre a nudez e a vergonha do pecado original (Cf. Gn 3, 8 – 11) e alimentar-se sacia a fome da sedução, pacto entre Eva e a serpente (Cf. Gn3, 6). São duas atitudes extremamente simples, mas que revelam o caráter dos verdadeiros santos, solucionam os maiores problemas sociais da humanidade e finalmente dissolvem o xadrez selvagem do materialismo.

12 foram também para o batismo cobradores de impostos, e perguntaram a João: “Mestre, que devemos fazer?” 13 João respondeu: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”.

A corrupção não é apenas um tema político. Veja como toca a essência da relação com Deus. Todos querem saber “o que devemos fazer”. Mas que pergunta fundamental! Através dela muitos, senão todos, podemos descobrir a revolução mais importante das nossas vidas: ‘o que eu posso fazer?’ Talvez a centralidade moral da religião deva circular em torno desta incógnita. Talvez muitas descobertas se façam a partir desta resposta: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”, ou seja, não tire do outro o que não te pertence! Ainda me pergunto se pudéssemos ler nesta frase o seguinte: ‘conserva no outro o que lhe pertence’, não só ‘não tire’, mas ‘conserva’!

14 Havia também soldados que perguntavam: “E nós, que devemos fazer?” João respondia: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações;
ficai satisfeitos com os vossos salários!”

Nem roubo, nem calúnia. Aqui não estão apenas dúvidas de tantos que procuravam o batismo de João, parecem também se tratar dos conselhos morais, uma lista amadurecida de atitudes que cada um, e não apenas os grupos isolados da perícope, podem assumir como suas. São conselhos aparentemente em preparação ao batismo, todavia lembre o leitor que São Lucas escreve seu evangelho mais de cinquenta anos depois da morte de Jesus e de João Batista. Há aqui um resumo, curiosamente bem atual, para a religião e para a sociedade dos nossos dias. De fundo, podemos ler um ‘cuide de sua vida!’ E se for importar com o seu semelhante que seja para lhe fazer o bem.

15 O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias. 16 Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias.
Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo.

Houve até quem dissesse que Jesus era a reencarnação de João Batista (Cf. Mc 8, 28), tamanha era a força, popularidade e testemunho daquele homem, a ponto de quase ofuscar Jesus. Ele chega a admitir que há uma necessidade de que ele diminua para que Cristo cresça. Eis o sinal, a moral do religioso, como canta Pe. Zezinho:
“Quando a gente encontra Deus, quer ficar cada dia menor, quer ver Deus cada dia maior no coração de cada pessoa. Quando a gente encontra Deus, quando encontra de verdade a grande luz, Diz o que disse João ao falar de Jesus: não, não, não, não sou a luz, mas conheço quem dela veio! Sou somente um religioso. Sou somente um religioso.”

17 Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga”.
18 e ainda de muitos modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova.


Confesso ao bom leitor que mesmo os apóstolos tiveram as suas incompreensões perante Jesus. Esta seria a minha com o batista. Ele acabou de falar tão belamente de Jesus: “(...) Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo”. Por que mudou o tom e aplicou o fogo divino para queimar os que são como palha, secos e inférteis, sem nutrientes nem utilidade, a não ser para feno, comida pro gado ou compor paredes de argila? Decididamente a maior história de amor entre o céu e a terra não traz um romantismo ingênuo. Há algo de catastrófico no amor que não é amado. Há uma perda incomensurável, um preço de sangue, um desfecho de vida ou morte, cuja interatividade evangélica definirá o gênero desta ‘epopeia’ cristã. O que escolhe: a vida ou a morte? (Cf. Dt 30, 15.19)

Desejo a todos uma excelente semana de revisão e de tomada de boas atitudes, sobretudo de confiança em Deus. Deixe-se conduzir por Ele!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Barra dos Coqueiros – SE, 13.12.2015
Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 5 de dezembro de 2015

PEDRINHAS DE BRILHANTE

Lc 3, 1 – 6
2º DOMINGO DO ADVENTO

1 No décimo quinto ano do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galiléia, seu irmão Filipe, as regiões da Ituréia e Traconitide, e Lisanias e Abilene; 2 quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto.

O tempo é uma medida de cálculo tão antiga que beira a eternidade. Nós convencionamos a marcar as coisas e as pessoas com estacas numéricas, a fim de não nos perdermos no emaranhado de nossas histórias.

De fato, muito provavelmente, delimitando circunstâncias podemos nos situar melhor onde, quando, como as coisas aconteceram. Até a origem do mundo já foi explicada pelos números. No entanto, ao fazermos descrições, estaremos dando a nossa percepção das coisas e das pessoas; não se creia, todavia, que sejam as únicas formas de apresentar a realidade e os fatos.

Essa delimitação do evangelho de São Lucas tem intencionalidades políticas e bíblicas, em situar a profecia no lugar do seu cumprimento. Seria preciso conhecer muito de exegese, ou melhor, explicar, por exemplo, por que as regiões da Judeia e da Galileia são citadas junto dos nomes de Anás, Caifás, Zacarias, João, inclusive do deserto. Isto tudo num tempo bem contado: o décimo quinto ano do imperador.

Não é que Deus dependesse daquele cronograma para que chegasse o Kairós da graça. Essa linguagem é humana; uma adaptação do modo como lemos a situação de Deus em nossas vidas, talvez, por não o percebermos na linha ininterrupta de um tempo que não se mede. Aliás, parece, nós não conhecemos um tempo que não se mede.

Já o deserto, João foi para lá viver e trabalhar, pregar a quem o procurasse e alimentar-se do que fosse possível, onde não houvesse muito. Não será diferente com Jesus. Mesmo percorrendo aquelas regiões, tanto se retira para ficar só quanto é procurado pelas pessoas e se alimenta do que lhe servem. Parece-nos, já de início, uma característica do sucesso pastoral e da qualidade desses pregadores: anunciam sem proselitismos e se sustentam da providência.

Mas o deserto aqui também é mítico, como muitas figuras e alegorias bíblicas. Ou seja, ele não está referendando uma localização geográfica. Inclusive, falta-lhe o nome e a localização. Que deserto é esse, então? Ora, amado(a), a solidão é o maior deserto da humanidade. E não precisa estar só para se encontrar solitário, não é verdade?

O que mesmo é o deserto bíblico? Imagem tão comum nos grandes momentos do povo de Deus, que embora acompanhado do ‘Deus Conosco’, quantas vezes esse povo vai esquecer e viver como se Ele não existisse! A solidão nem sempre é ser abandonado, mas fechar-se em si mesmo e isolar-se dos que lhe amam. Existe deserto mais árido e perigoso?

3 E ele percorreu toda a região do Jordão,
pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados,

A intervenção divina se dá, neste início de pregação de João, no deserto de sua vida, lá onde ele se encontrava no anonimato; talvez com outros retirantes à espera do Messias, como já era costume em sua época. Sabemos que havia seguidores em torno dele, mas a sua novidade perante Israel, além do chamado particular desde o anúncio de Gabriel a seu pai Zacarias, é um perdão além dos touros e bodes, além do sangue que jorrava no Templo de Jerusalém, sem devoção (Cf. Sl 50).

Quando a própria religião perde o significado dos seus sinais eles se tornam apenas o que são: um ato. O que dá espiritualidade e, portanto, diz respeito ao sagrado, em um ato, é a sua ligação com o espiritual. Se os que o praticam não estão imbuídos nisto, não participam do ato, embora estejam presentes, se não significa nada para eles também não significará para Deus. Eis o que invalida e depois destrói um culto (Cf. Is 1, 11 – 17).

O batismo e a conversão dos pecados eram as notas distintivas da espiritualidade do ‘caniço’ do deserto (Cf. Mt 11, 7). Apenas o batismo de João não perdoava pecados. Ele até se irrita ao ver pessoas sem contrição aproximarem-se das águas. Usa uma expressão severa, para alguns escandalosa, mas denunciadora: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura?” (Mt 3, 7). Para a ‘religião’ de João era impossível receber um rito de passagem sem de fato marcar uma transição de etapa na própria vida. O batismo exigia o arrependimento, porque o arrependimento vinha antes do batismo. Melhor, era o arrependimento quem levava o penitente ao batismo.

4 como está escrito no livro das palavras do profeta Isaias: “Esta é a voz daquele que clama no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitais suas veredas.

Nós estamos refletindo sobre o Advento. Esse tempo de espera dAquele que há de vir, mas ‘Ele está no meio de nós’; o Verbo de Deus, a semente da vida, a essência da existência, razão, reflexo e modelo, imagem de Deus Pai, gerado e não criado, encarnado no seio da Virgem Maria, donde lhe vem a graça de ser a mãe da humanidade.

O Natal não é um tempo, é ‘o’ tempo. Todo tempo é nascimento e vida, intervenção divina e reaproximação, religação – religião, entre nós e Deus, entre nós e nós mesmos. Por isso todo tempo litúrgico não se dissolve no calendário civil. É isto que ainda ecoa a voz que vem do deserto, o som que dissipa a Palavra e que faz, nesses dias, de cada um de nós, clamores de acertos, tentativas de melhoras, somos a preparação dAquele que é o Caminho, o seu maior adorno. Não somos a árvore, mas os seus frutos.

O verso seguinte, da perícope, é entusiasmante! “Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados serão aplainados.” (v. 5) Esta é uma tarefa impossível para alguém que grita sozinho. Este é o segredo da mensagem: ela é gritada para que todos ouçam. No momento em que desistirmos de dizer aos demais que endireitem o caminho, que aterrem seus desfiladeiros, que reduzam suas montanhas e rebaixem ao máximo seus paredões e serras, que consertem as curvas traiçoeiras de suas estradas e tapem suas trilhas esburacadas, ninguém mais vai se perder, ninguém mais vai se cansar ou tropeçar, ninguém mais vai cair quando passar pelas estradas da vida de seus semelhantes.

6 e todas as pessoas verão a salvação de Deus’ ”.

Qual a importância de aplainar os caminhos? Por que somos nós quem devemos fazer esse trabalhão de infraestrutura de estradas e rodagens? Por que agora tenho que arrumar o caminho do Senhor? O amado(a) leitor me permita outra pergunta, depois de lhe lembrar que a estrada de Deus não é a que Ele ande sozinho. A estrada dEle é a sua vida; este é o caminho do Senhor. Agora lhe pergunto: foi Ele quem bagunçou a sua vida?

Arrumar não é uma tarefa fácil, eu bem sei. Alguns caminhos foram destruídos por vagabundos que trilharam a esmo e só pensavam em matar, roubar e destruir. Assim entraram em nossas vidas para nos dominar e saíram dela levando o que puderam, deixando rastro de destruição. Alguns se apoderaram do que não lhes pertence, mas se sentem donos e já gastaram tanto do que levaram que não tem mais como devolver, senão os trapos e barracos.

Há muito que reconstruir. Eu também sei! Afinal, somos os construtores de nossas próprias vidas. Edificamos uma vez, duas, três, edificaremos novamente. O ladrão só pode viver de espoliações, a sua vida é miserável e já está destruída. Reconstruir é uma tarefa que se empreende em mutirão, na animação dos gritos e músicas de estímulo a quantos possam ouvir. Desde criança aprendemos a refazer e endireitem nossos caminhos, quando esperamos quem amamos. Pois, mandem ladrilhar as suas ruas com pedrinhas de brilhante, pois o Senhor vai passar.

Desejo uma excelente e abençoada semana! Bom passeio com Jesus, pois Ele continua trilhando as nossas estradas.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Barra dos Coqueiros – SE, 05.12.2015