domingo, 31 de janeiro de 2016

LÍNGUAS DE TRAPO

Lucas 4, 21 – 30
4º Domingo Comum B

Entrando Jesus na sinagoga, começou a dizer: 21 “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir”.

Toda liturgia é este memorial eficiente de atualização da vida de Jesus em nossas vidas. O ‘hoje’ tão esperado, dia da salvação, o aqui e agora, já, ainda que não definitivamente. A cada celebração experimentamos no presente as realidades celestiais. Isto parece uma utopia alienante, que se não fosse dita por Jesus seria inacreditável e repulsivo que se tratasse o ser humano com tanta ilusão. Mas, graças a Deus, Jesus existe e vai terminar a obra que começou.

Para a condução desta reflexão, peço a licença do leitor, com todo o respeito e consideração, para tratar de um assunto que pode despertar a sua consciência, e de alguns, ou aparentar alguma presunção de minha parte, ao que adianto, jamais seria a minha intenção ferir alguém, senão tirar o cascão mal formado da ferida, que tanto machuca a vida religiosa, para que cicatrize melhor.

22 Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saiam da sua boca. E diziam: “Não é este o filho de José?”

Qual o pregador da Palavra de Deus ou amigo de alguém que nunca experimentou esta duplicidade em seu próximo? Em um momento o escuta com atenção e encantamento, em outro é o primeiro a lhe criticar e repudiar as palavras. Em minha história de vida também já fui amado e já fui odiado, sou amado e sou escamoteado. Tem nada não! Já fui aclamado e ovacionado, mas também já fui rejeitado e expulso. Mas, em que fui diferente de Jesus? Como diz São Paulo: “Sei viver na riqueza e sei viver na pobreza.” Isto nos ensina a vida: a ser melhores.

Embora a admiração dos audientes de Jesus, ela escondia uma presunção da comunidade, que por conhecer Jesus de família e profissão, não admitia a Sua ‘nova’ autoridade e poder. Imagine o leitor que a região de Cafarnaum beirava os mil e quinhentos habitantes na época de Jesus, todos se conheciam desde criança. A Sinagoga ficava no alto e era o principal ponto de encontro depois do porto comercial do lago de Genesaré. Em muitas cidades a igreja ainda é o maior centro de convergência de pessoas, pela localização na Praça Matriz, e seus assuntos são os de maior popularidade, depois da política local. Todavia, isto não é evangelização.

Não é, entretanto, desconhecido que haja nas comunidades de fé quem se dê ao depaupério do preconceito, de diversas formas. O mais conhecido, parece-nos, é o das vestes. Mede-se a participação no templo pela roupa que usa. Polêmicas à parte, ainda tem a identificação pessoal com este ou aquele irmão de caminhada ou com o ministro. Mede-se a importância da pessoa pela atenção que ela dá; se me dá atenção, então eu gosto dela. São inumeráveis os critérios que se utiliza para categorizar alguém, mesmo entre ‘irmãos de fé’. Então, dá pra ver que não é a pessoa nem suas palavras, mas o quanto me agrada o maior critério de aceitação na roda.

23 Jesus, porém, disse: “Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum”.

Cafarnaum foi a residência de Jesus, depois de Nazaré. Escolheu morar ali, provavelmente pela localização estratégica de entreporto e comércio, sobretudo, por ser moradia das pessoas mais pobres da região, de pescadores e miseráveis. Poderíamos até arriscar em dizer que a maioria dos Seus milagres Ele os realiza em Cafarnaum. Este verso dá a entender que a Sua fama já era conhecida e já começava a despertar despeito entre os seus conhecidos.

Jesus também se colocou na mira dos olhares de todos e levou seus tiros, alfinetadas e punhaladas pelas costas. As pessoas se encantavam e logo se decepcionavam com Ele. Sim, Jesus decepcionou muita gente, inclusive os seus concidadãos! O evangelho de hoje se presta para uma leitura muito sincera da postura da comunidade e de seus ministros. Quantos preferem agradar para serem agradados, aliviando o peso das palavras para não perder os infiéis? Permitam-me um conselho: Viva além do que dizem! Seja fiel a Deus e à sua consciência apesar do que falam! Faça o que deve, mesmo que lhe difamem! E mande todos que falam mal de você fazerem melhor. Não se convença das incertezas deles e que examinem suas vidas. Se quiserem frear você, não podem conseguir!

Engana-se o pregador e engana-se a comunidade. A Palavra é a referência, ela não pode mudar ao sabor dos que a ouvem. Assim seria deveras volúvel e impossível tomá-la com segurança. Ora ela penderia para um lado ora para outro. Outrossim, a fortaleza maior deve estar mesmo em quem a anuncia. Ele é o encarregado de manter a solidez da Palavra. Coisa terrível é quando o pregador titubeia e apresenta uma Palavra tão frágil quanto ele. Melhor seria não pregar a falar o que a Palavra não diz. Será tratado como o “menor no reino dos céus”, mas se mudar as letras será “amaldiçoado”.

24 E acrescentou: “Em verdade eu vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria. 25 De fato, eu vos digo: no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três anos e seis meses e houve grande fome em toda a região, havia muitas viúvas em Israel. 26 No entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva que vivia em Sarepta, na Sidônia. 27 E no tempo do profeta Eliseu, havia muitos leprosos em Israel. Contudo, nenhum deles foi curado, mas sim Naamã,o Sírio”.

Em vésperas de quaresma valeria a pena repensar, não só as práticas de penitência, mas as práticas homiléticas. Será que nossas pregações têm mesmo estimulado e até convertido as multidões que arrasta? Em tempos de novena e de Semana Santa as igrejas superlotam e seus bancos de madeira pedem socorro às cadeiras de plástico ou qualquer tijolo onde se possa descansar um quadril fadigado. Mas, o que ocorre no cotidiano da fé que não motiva a permanência dos penitentes, não continua o jejum, a esmola e a caridade, não se condoi com a Paixão do Senhor, nem exulta mais com a Sua Ressurreição ou O sente em suas orações? Fé e piedade não são temporãs, não passam como correnteza de uma enxurrada. Salvo a grande minoria dos fiéis, para onde foram os fieis à procissão? Não voltaram à missa seguinte!

Jesus não temeu o repúdio dos Seus, nem se deixou seduzir por seus elogios e reconhecimentos. Não pregava para os aplausos, muito menos para o aumento das multidões. Vale lembrar que, quanto maior o número de pessoas, menos será o alcance da voz e das palavras. Os pequenos grupos sempre foram quem sustentaram a continuidade e fidelidade da mensagem. Não trago, nem sei se há soluções para a religião das multidões. Só sei que a pregação eficiente é aquela mais direta e quanto mais próxima dos ouvidos tanto melhor.

28 Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. 29 Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício. 30 Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou o seu caminho.

Este evangelho tem uma semelhança impressionante com os textos do desfecho da vida de Jesus. Desde a aclamação e reconhecimento de onde Ele vem, na entrada em Jerusalém; depois, quando a sua mensagem incomoda pela verdade, os que o escutam e aclamam, prontamente o odeiam e ameaçam; querem matá-Lo; até a interpelação “desce da cruz se és o Messias!” (“médico, cura-te a ti mesmo”). Passar ileso entre eles é a travessia a pés enxutos pelas águas turbulentas do Mar Vermelho e pelo vale tenebroso da sombra da morte na Ressurreição.

Não se engane o fiel, esta é a sorte do discípulo. O amor à comunidade não pode ser uma conchavo político de cumplicidades, seja de qual parte for, nem um apego apaixonado acima da missão. Não podemos amar mais do que Jesus. A forma desse amor misericordioso Ele já nos ensinou, assim como a medida e a dosagem certas. Engana-se o pregador que pensa estar a serviço da comunidade. Ele está a serviço de Jesus e de Sua Palavra, que é maior do que o pregador e maior do que a comunidade inteira. Por isso “Eu anuncio aquilo que aprendi de meu Pai.” Assim fica claro que não fazemos propaganda de nós mesmos, nem estamos em competição de curtidas em redes sociais.

Muito me preocupa quando um líder religioso é mais aclamado e lembrado do que Jesus a quem ele diz anunciar. Mas mais triste é quando esse líder se anuncia em suas próprias homilias. Não reunimos a comunidade para dizer que somos bons, ainda que sejamos santos, nós a reunimos para falar de Jesus. Talvez a perda da referência cristã, mesmo entre os cristãos, esteja na escassez da pessoa de Cristo em nossas conversas; das informais às oficiais nos templos. Parece que cada vez mais estamos sabendo contar menos a história da vida de Jesus. Os temas sociais, familiares e pessoais assumiram o conteúdo da religião que passou a ser instrumento de moralização. O como devemos agir passou a ser mais importante do que como Jesus agiu. Parece a mesma coisa, mas fique atento se Jesus é o modelo da ação e, sobretudo, o sentido dela em nossas pregações. Evitemos dizer tolices; evitemos o mal das línguas de trapo, de remendos que dilaceram a costura.

Não vimos Jesus adular seus seguidores, ao contrário, nós até achamos que Ele os enxotasse, com licença da palavra! Jamais por maldade, mas por sinceridade. São palavras como as de hoje que coloca os estrangeiros em maior atenção da parte de Deus ou quando não ameniza em dizer: “quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cotidiana, e depois me siga.” Ser religioso não é algo para ufanar-se, não se trata de uma ostentação. Daí porque vale mesmo entre iguais; inclusive de ministro para ministro. Quem sabe não seja outro grave erro quando, na religião, o profetismo se tornou apenas vertical e descendente. Por que se vê tão pouco horizontalmente e vertical-ascendente?

Creio na fé destemida, não na temerária! Que a sua fé evolua à caridade! Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Estância – SE, 31.01.2016

Pe. Adeilton Santana Nogueira

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

02 A DISTINÇÃO DOS CONCEITOS DE HEIDEGGER: ENTE E SER


Como havia me referido no primeiro texto: SER, ANGÚSTIA E MORTE, introdução deste projeto de propor uma conversa a três: o autor dessas ideias, o filósofo Martin Heidegger, você, meu leitor, e eu, seu mordomo, agora iniciamos de fato.

Portanto esta primeira fase apresenta algumas terminologias próprias do filósofo, termos e conceitos heideggerianos fundamentais para toda a filosofia, como o são os significados de ENTE e de SER, bem como o DASEIN, expressão alemã, língua original do autor, que é sua palavra-síntese para designar o SER-AÍ, em sua existência e presença situada. Ainda veremos o conceito de EXISTÊNCIA enquanto abertura e desvelamento do ser; o conceito de MUNDO e seu caráter de mundanidade, o de SER-NO-MUNDO e SER-COM-OUTRO, e a capacidade unicamente humana de lhes dar sentido e encontrar sentido.

Não nos enganemos, este parágrafo acima está longe de ser uma panorâmica; é um voo tão raso, mas já mostra a profundidade dessas águas em que mergulharemos e quão cristalina é sua vista, se imersos no pensamento do autor. Como toda leitura filosófica, a melhor maneira é uma visão despretensiosa e sem preconceitos. Todavia, caro leitor, faça-nos um obséquio, volte e releia este texto, sobretudo o parágrafo acima; se quiser leia só ele. Já leu? Então continuemos.

Estes conceitos passam a ser o fundamento da nossa exposição e merecem máxima apreensão, compreensão e memória, nesta construção filosófica. A compreensão desses termos revelará uma semântica própria do pensador em questão, perceberemos que são conceitos próprios e, portanto, entendê-los é mister para quem deseja compreender suas ideias de SER, ANGÚSTIA E MORTE.

O problema fundamental da filosofia de Heidegger, como um todo, não é a existência, mas a questão do Ser, que ele desenvolve em sua obra principal Ser e Tempo, no horizonte da existência, mas em seu pensamento posterior aborda no campo de uma certa filosofia da história e de uma reflexão aliada à poesia.

Problema é, no senso comum, algo de complicado que precisa ser resolvido. Desta vez não é diferente na filosofia. O que é o Ser? O que é Ser? O Ser se define pelo que vemos dele ou por aquilo que ele diz, demonstra, de si mesmo? O Ser é em sua essência ou em sua existência? Quais fatores condicionam a compreensão do Ser das coisas? Isto muda com o passar dos tempos? São perguntas simples e pouco fundamentadas em Martin Heidegger, porém nos ajudam a perceber a mobilidade de conteúdo, do que se pode dizer do Ser; portanto a mobilidade semântica, a mudança de significado do que são as coisas em seu íntimo. A nossa própria vida o demonstra muito bem. Quantas vezes já mudamos de ideia sobre nós mesmos! Quantas músicas, quantos estilos em nossas pinturas, quanta poesia ainda se dirá para definir as coisas?

Apesar de tanto questionamento solto por aí, o ponto de partida de Heidegger, onde ele coloca o problema do Ser, é o ‘esquecimento do ser’. Para chegar ao seu diagnóstico, o filósofo examinará toda a tradição filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche. Segundo ele, desde os primeiros filósofos gregos o pensamento não teria distinguido adequadamente a diferença entre ENTE e SER, entre o que existe simplesmente como uma coisa, tudo que está aí, e entre o que é enquanto Ser, o sentido da coisa que existe aí e que existe, inclusive, antes dela existir.

Olha já a ideia se clareando! Convencionou-se entender que Ente seja tudo que há, até o imaginário, não necessariamente real, além do concreto e do palpável, e o Ser aquela ideia tão evidente das coisas que nos dê a impressão de possuí-la, ainda que abstratamente, em nosso pensamento e coração e que pré-existe como fundamento dos Entes. Talvez contrariássemos o filósofo se chamássemos de Ente – ‘coisa’ e de Ser – ‘ele’. Não se estranha a opção de referir-se ao Ser em Heidegger pelo DASEIN, palavra-síntese para o SER-AÍ, e a importância de sua existência como presença situada percebida e significante.

Prestemos atenção para o fato de que investigar o Ser do Ente não é a mesma coisa do que investigar a maneira como, no ente, manifesta o ser, que neste caso é o Ser enquanto tal. É certo que o Ser só se dá no Ente, mas isto não significa que pode ser reduzido ao Ser do Ente, como se o Ser fosse a essência do Ente, pois Ente é já tudo o que está aí, mas Ser é quando o Ente é percebido para mim, a sua manifestação existencial.

Para Heidegger, o tema do ser, com o qual começou o pensamento ocidental com os pré-socráticos, portanto, tem de ser novamente levantado a partir de uma ontologia fundamental, ou seja, de um estudo do Ser na busca de suas teorias originais, e isto tomando como fio condutor o único Ente que tem a possibilidade de questionar o Ser, que é o homem. Pois o homem é dentre todos os Entes o único que compreende o Ser, o sentido do fato de que ele é, de que existe, daí porque ele insiste na análise existencial do Ente para se compreender o sentido do Ser.

A compreensão do Ente é a descoberta do Ser. Ambos conceitos só se confundirão no anonimato de um deles. É na palidez do Ser, na perda de sentido para quem o observa, que ele se confunde com uma entidade qualquer. O próprio homem projeta suas entidades, suas categorias como seres postiços, como espantalhos de si mesmo, como a morte, a felicidade, os deuses; enquanto isso esconde o Ser em si mesmo, que é o conceito mais próprio de quem ele é, ele e suas coisas, o Ser e os Entes.

Para Heidegger não se trata do Ser do Ente, mas do Ser além do Ente e daquilo que o Ser é aos olhos de quem o interpreta. Veja o leitor se essas ideias não lhe despertam também o interesse de investigar a si mesmo e as coisas à sua volta; veja também se descobriu o Ser que se esconde sob as aparências de entidades que se elegem como se fossem autônomas e absolutas, como se tivessem vida própria e ainda dessem sentido à vida e ao existir, por si mesmas. Será que são os Entes que possuem o Ser e lhes dão sentido e identidade ou é o Ser que dá sentido ao ente e, portanto, precisa ser descoberto e até ser nomeado para dar significado às aparências e fantasmas de nossa vida?

Espero ter provocado o investigador que existe em você e que passe a olhar diferente para tudo que o rodeia. Não precisa concordar comigo ou com Martin, basta que não se conforme mais com o modo como vê as coisas, elas estão muito prontas e certinhas, acomodadas, e as coisas continuam nos confundindo naquilo que são de fato. Não custa se perguntar de novo que coisa é para mim cada pessoa ou objeto, que significado tem ou dei a elas e se são de fato o que parecem. Coragem! Se são, ótimo! Se não são, ótimo que descobrimos há tempo.
27.01.16

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

01. SER, ANGÚSTIA E MORTE: quem sabe um caminho de autenticidade!


Acredito que todos já falaram algum dia sobre essas três situações da vida: o ser, a angústia e a morte. Não precisa ser melancólico para tratar desses temas, seja em solitárias elucubrações ou em rodas de conversa, seja provocado por alguma catástrofe ou simplesmente pela grandeza e profundidade dessas palavras e suas respectivas situações existenciais. Quem nunca se perguntou sobre a própria vida, quem nunca se angustiou com algo ou alguém, quem nunca pensou na morte?

Mas desta vez venho pedir emprestado, ou melhor, tomo nas mãos do filósofo alemão Martin Heidegger e de suas ideias do ser humano como um ser-para-a-morte, assim como se fosse uma palavra só. Sua palavra aglutinada, ao leitor que não o leu, parece tétrica e pesarosa, algo do tipo depressivo, mas se trata do contrário, o que pretendemos apresentar nesta nova sequência de textos, onde parto da minha pesquisa de conclusão do curso de licenciatura em filosofia.

Há algum tempo já quis propor esta conversa com o leitor para simplificar esses conceitos aparentemente complicados e misteriosos ao pensador comum, como morte, angústia, nada. Longe de querer aumentar a melancolia da sociedade e justificar seus desvarios pretendemos, com o auxílio do filósofo que mais se dedicou nesses temas e pode apresentar uma saída pessoal, quiçá ajude a nós todos, através da tomada de consciência e de atitude.

Escolhi Martin Heidegger (1889 - 1976) pelos temas e por ser um dos principais nomes que se destacam na exposição da filosofia, nas correntes da fenomenologia e do existencialismo. O pensamento dele é, seguramente, um referencial na história da filosofia no Ocidente. Nestas reflexões que começaremos juntos, partiremos sempre do esclarecimento conceitual de Heidegger, ou seja, o que é para ele cada coisa que estaremos refletindo. Primeiro ele diz o que é, depois nós tentamos aplicar à nossa vida cotidiana e a nos questionar sobre suas ideias, se são relevantes para nós e se nos ajudam em alguma nova e boa compreensão daquilo que nos questiona. Para isto nos basearemos em sua obra principal, “Ser e Tempo”, sem deixar de folhear outras obras suas, bem como de seus comentadores. Desejamos, com isso, fazer uma reflexão sobre a analítica existencial da finitude, pois é, seguindo a linha de raciocínio de Heidegger, em vista do fim de tudo que se percebe o valor das coisas que o antecedem, inclusive o valor das coisas que vem depois do fim delas. Só digo que vale a pena pensar e escrever mais um pouco sobre o conceito de ser-para-a-morte, ao invés de congelar nele como se não nos dissesse nada além da morte do ser.

Caro leitor, nós iremos fazer um passeio no pensamento do filósofo Martin Heidegger; vamos dar uma volta em torno do conceito e das categorias do ser-para-a-morte, encontrando o aspecto positivo da angústia e da possibilidade da morte como inevitável, para a qual o ser existente possa se projetar e, assim, se abrir a uma existência autêntica, sendo senhor de si, que é a tomada de atitudes, suas escolhas e suas consequências.

Para chegar ao que se propõe nesta trajetória trataremos primeiro dos conceitos fundamentais da filosofia heideggeriana como: Ente, Ser Dasein, Existência, Mundo, Ser-no-Mundo e Ser-com-Outro. Será um encadeamento de conteúdos que vão tecendo o conceito principal de Ser-aí, o Dasein. Não se preocupe o leitor que estaremos caminhando e dialogando juntos com o nosso pensador. Serei apenas um guia, quem sabe um mordomo. Mais adiante entraremos no inevitável fenômeno de abertura do Ser, que para ele se chama Angústia. Fator fundamental para despertar a tomada de consciência, gera temor e medo, mas projeta o ser na transcendência e na morte que trataremos já nos últimos textos e reflexões. É nessa fase, a morte, entendida muito diferentemente do que apenas a morte corpórea, quando o homem pode sair da inautenticidade para a autenticidade. Quantas implicações em vida não despertará esta nova consciência de um ser-para-a-morte!

Por hora deixo apenas uma pergunta: como seria possível alcançar a autenticidade em vida, se esta, para Heidegger, é na morte, e a morte é o fim? Não se apresse em responder. Mas, pense mais um pouco. Contudo, para encontrar a resposta a esta pergunta angustiante será necessário também chegar ao fim, ao menos destes escritos. Assim espero, que ao final deste intento, todos sejamos mais autênticos e menos angustiados. Este é o principal motivo por que decidi recomeçar esta obra.

25 de janeiro de 2016


domingo, 24 de janeiro de 2016

UNGIDOS OU NÃO

Lucas 1, 1 – 4; 4, 14 – 21
2º Domingo Comum B

Em toda liturgia há uma gradação como degraus que se vão subindo e descendo, na tentativa de se ter uma oportunidade de encontro com o autor de todo ritual sagrado, em última volta, o próprio Jesus. Seja uma liturgia boa ou má celebrada, o intento primeiro e último é fazê-Lo presente.

Ao longo deste ano, portanto dessa leitura contínua, vamos seguir a mesma intuição litúrgica e ritual de apresentar Jesus. Sem o suporte emotivo de um templo e suas artes, em demérito da acústica do canto e da pregação, apenas o silêncio de sua leitura e essas mal traçadas linhas nos distam da experiência do, quiçá, autor dessa reflexão.

Continuamos contando a vida de Jesus e extraindo dela alguns questionamentos para a vida pessoal, não o contrário. Não questionamos a vida de Jesus, mas a nossa espelhada na Sua. Do mesmo modo quanto se disse muito sobre Ele, também dizem muitas coisas sobre nós mesmos. Salva as devidas proporções, a verdadeira lição sobre a vida de alguém não se encontra nas curiosidades que ela desperta, mas nas respostas que completam a vida de quem se questiona. Perguntar ao outro é coisa deveras fácil; prova-o o cotidiano comezinho de quem assim se interessa, mas colocar-se no lugar do outro e descobrir como trilharia aquelas estradas, ô assunto delicado!

1 Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, 2 como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra.

Vê se não é interessante que Lucas afirme haver outros escritos a respeito de Jesus. Nós acostumamos a achar que apenas o Segundo Testamento fala do Cristo, quando agora lemos que também os evangelistas leram aqueles escritos mais antigos que os seus, inclusive de testemunhas oculares, coisa que Lucas não foi, um evangelista que não foi seu apóstolo, nem seu discípulo, pois não conheceu o Mestre.

3 Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. 4 Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste.

Aqui está o que fez Lucas: procurou conhecer com acuidade o que diziam de Jesus, foi às fontes, não se contentou nem com o testemunho isolado daqueles que O conheceram. Não ignorou seus depoimentos, mas lhes somou os de tantos outros e relatou a quem quer que fosse (Téo = Deus + filós = amigo) amigo de Deus, os evangelhos da infância, da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus e a vida das primeiras comunidades. O seu Evangelho e os Atos dos Apóstolos formavam um livro só, compendiado a fim de mostrar a saga de Cristo, da Anunciação até um dia comum de Paulo pregando em sua cabana a pagãos que o procuravam, pois a eles agora foi enviada esta salvação que vem de Deus e eles a ouvirão (Cf. At 28, 28).

Naquele tempo, 4,14 Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza. 15 Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam.

Logo após o batismo, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado pelo demônio. Depois é que se dirige à sinagoga de sua terra natal. Não pense o leitor distraído que essa sucessão se dá de imediato, como cenas cortadas de um filme, ou como aqueles que assistimos. Consideremos as distâncias e a viagem a pé, além dos seguidores que se somavam paulatinamente. Há quem pense que Jesus tinha esse mapa e estratégia bem definido desde que saiu do útero de sua mãe. Não creio, pois quando se diz que Ele crescia em sabedoria, estatura e graça (Cf. Lc 2, 52), pode-se pensar que muito da sequência de Sua vida nem Ele definia, só o Pai sabia (Cf. Mt 24, 36).

16 E veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga, no sábado, e levantou-se para fazer a leitura. 17 Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: 18“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos 19e para proclamar um ano da graça do Senhor”.

Ainda ao leitor menos atento, veja a semelhança desse texto lido por Jesus e o Magnificat que sua mãe canta a Isabel. É uma letra na boca do povo que aguarda ansiosamente um bem, a paz e a libertação, a justiça entre as pessoas. Uma letra cantada em diversas bocas, mas uma única e mesma esperança: a de que Deus seja por nós. O que não deixa de provar o descrédito entre os homens, em quem não dá mais para confiar a solução dos nossos problemas. Todavia, Jesus ensinará que nem tanta a terra nem tanto o céu, é no coração do homem que residem os maus pensamento (Cf. Mt 15, 19), portanto é através de atitudes humanas, a Seu exemplo, que amaremos perfeitamente. Jesus põe em nossas mãos a Sua divina missão de passar no mundo fazendo o bem (Cf. Jo 10, 38).

Citarei apenas três frases de Jesus em que as atitudes do coração modificam qualquer pessoa. Após o lava-pés: 1. “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13, 15); 2. Ainda na ceia afirma que não existe prova de amor maior do que este: “dar a vida por seus amigos” (Cf. Jo 15, 13); e 3. O resumo da lei e dos profetas: “Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles.” (Mt 7, 12).

20 Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. 21Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”.

Esta atitude, em dizer ‘hoje se cumpriu’, em trazer para Si a realização da profecia, uma visível arrogância perante a comunidade que não O via como o Messias sagrado, até aos primeiros cristãos isso foi uma compreensão posterior à ressurreição, causou muita desavença naquela hora. Essas, entre outras palavras, encheram os judeus de cólera, a ponto de quererem apedrejá-Lo. É nesse contexto que Ele diz: “Nenhum profeta é bem aceito na sua pátria” (Lc, 4, 24).

Desculpem-me os acomodados, mas doa em quem doer, desde que nos intimidamos e deixamos de atualizar essa profecia, deixamos de proclamar um ano da graça do Senhor e de cumprir ‘hoje’ esta unção: evangelizar pobre, libertar pessoas cativas e oprimidas e recuperar a vista a cegos. Alguns de nós, inclusive ditos ‘religiosos’, preferem o interior de seus templos, a distância de seus púlpitos, o isolamento de suas secretarias. Guias cegos de rebanho míope. Nessas igrejas não há libertação de cativeiro, quanto mais autoritarismo e endeusamento de suas lideranças melhor. Essas autoridades restauram regime bairrista, com seu fascismo mascarado, de ser o melhor para a comunidade, quando satisfaz os vícios do ditador autocrata. O governo é maior do que o indivíduo.

A dica pastoral é que não basta arrogar-se de possuir a unção do Espírito para esta ou aquela missão, mas possuir uma atitude diferente daqueles que não possuem tal unção. “Jesus, porém, os chamou e lhes disse: Sabeis que os governantes deste mundo o tiranizam, e que os grandes as governam com autoridade. Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo” (Mt 20, 25 – 26).

Desejo a todos, ungidos ou não, que façam a diferença e que suas atitudes encham de paz e amor o coração daqueles a quem Deus o aproximou. Tenham uma semana abençoada!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto – SE, 24.01.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

VINHO NAS VEIAS E SANGUE NOS OLHOS

Jo 2, 1 – 11
Bodas de Caná
1º Domingo Comum B

Assim começa o Tempo Comum, dedicado à vida pública e comum de Jesus, Seu dia a dia, se bem que Jesus não tinha nada de comum na Sua vida pública. Seus afazeres foram todos sacramentais, dos gestos às palavras. Assim Ele reescrevia com a Sua vida a vida de cada um de nós. Quem mais fez isso?

A vida de Jesus é pública desde que foi concebido em Maria virgem. Aos poucos foi reunindo pessoas em torno de Si. Algumas aparições Suas são relatadas sempre com maestria pelos evangelistas. Há sempre uma solene descrição de Sua presença. Cada história é um relato bem construído, com começo meio e fim. Cada cena sozinha é completa, mas também completa um grande quebra cabeça que até hoje tentamos inserir nossas pequenas peças.

1 Houve um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava presente. 2 Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento. 3 Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhes disse: “Eles não têm mais vinho”.

Mãe, filho e discípulos, todos são pessoas sociais. Apesar de convidados, estão atentos à festa como se fosse sua responsabilidade. Religiosos enfurnados ou devotos carolas, que não deixam as paredes do templo e de suas casas para conviverem no mínimo de normalidade, apontam não o pecado da sociedade, mas para a esquizofrenia de suas neuroses e medos mais íntimos. A religião urge de pessoas mais engajadas no mundo e não somente em seus espelhos narcisistas.

Desta vez o cenário está em uma festa de casamento. Parece que o código da Bíblia é assim: começar com o fim. Se o Gênesis começa com a revelação do paraíso, Jesus começa com a revelação das núpcias do cordeiro que desposa a sua Igreja. Há um simbolismo muito grande nestas cenas. Elas precisam ser vistas no conjunto do ensinamento de Jesus. Cada situação que Ele passa traz uma nova chave que abre outra porta do viver cristão. Esta, por exemplo, levantou em mim uma questão curiosa. Não foi somente o vinho que faltara, eles também não tinham enchido as talhas para purificação.

4 Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”. 5 Sua mão disse aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser”.

Uma vez disse a minha mãe que ela não era apenas a melhor mãe que eu conhecia, mas que era a melhor pessoa de todas. Não a diminuí enquanto mãe quando a classifiquei melhor enquanto ser humano. Penso que ao chamar de mulher Jesus a vê mais amplamente, bem como identifica as mulheres à Sua mãe, não pela maternidade, mas pelas atitudes de confiança incondicional que ela tem nEle (“Fazei o que ele vos disser”).

 6 Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros.

Sim, agora entra a polêmica! Como aqueles judeus não tinham se preparado para os rituais de purificação e enchido aquelas talhas de água? Aquela família, amiga da sagrada família, ao que parece, não praticava as abluções do judaísmo conservador, portanto poderiam ser judeus reformistas. Ainda mais poderia indicar que algumas práticas antigas e externas já perderam sentido.

7 Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca. 8 Jesus disse: “A gora tirai e levai ao mestre-sala”. Eles levaram. 9 O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água.

Quando estive na casa onde supostamente ocorrera esse milagre, em novembro de 2008, lá estava uma dessas talhas parecidas com nossos potes de barro, ainda presente em algumas cozinhas do interior. Lá também vi que os apaixonados jogavam moedas e bilhetes esperando alcançar algum novo milagre. Não joguei nem deixei nada, mas ainda trago a admiração de uma casa tão pequena para uma festa de casamento. Acredito que, se foi ali, a cena se deu mesmo no interior da casa o que confirma a intimidade dos convivas sagrados. A festa mesma ocorreria do lado de fora da casa, onde se pode acolher mais pessoas. Os problemas de casa, de fato, acontecem e se resolvem, em sua maioria, dentro de casa.

10 O mestre-sala então chamou o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho bom até agora!”

Tanto o mestre-sala quando o vinho são novidades da segunda etapa desta narrativa. A embriaguez legitimada por Jesus, a alusão repetida em outros evangelhos de um mordomo, um intermediário entre a comunidade e o milagre, papel dos ministros religiosos, o vinho vertido da água da purificação, indicam figuras escondidas no texto que merecem uma meditação e estudo mais aprofundados. Mas já indicam a temática geral desse Tempo litúrgico.

Jesus começa aqui vertendo água em vinha, mas terminará seu ministério público vertendo o vinho de outra celebração, sua páscoa, em seu sangue. Naquele dia da Nova e Eterna Aliança, o noivo será Jesus e o mordomo cada um dos apóstolos reunidos. Maria não mais precisará dizer: “Fazei o que ele vos disser”, pois o próprio noivo não deixará mais faltar vinho. Ele mesmo dirá de Si: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, assim façais também vós” (Jo 13, 15) e “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22, 19).

11 Esse foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele.

Eu desejo que, ainda que falte a pureza, jamais lhe falte a graça de Cristo e ainda que haja vinho em suas veias não lhe falte o sangue nos olhos. Não seja um cristão de festas, mas de martírio. Fica com Deus e tenha uma semana abençoada!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Barra dos Coqueiros – SE, 17.01.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

sábado, 9 de janeiro de 2016

TUDO FLUI

Batismo de Jesus
Lc 3, 15 – 16. 21 – 22

Presépios desarmados, pisca-piscas desligados, árvores guardadas, o natal terminou. Tantas luzes, tantos presentes, tanta fartura, tanta comida, tanta gente, tanta alegria! Boas festas! Feliz Ano Novo! Reencontros, visitas, viagens, paisagens, lembranças e saudades, tudo encanta nesse tempo.

Lembro-me de uma casa, em uma cidade onde fui pároco, em que todas as luzes ficavam acesas e eram coloridas. Não só a árvore da porta de casa era de natal, mas toda a casa era natalina. Sempre me encantou o jeito de ser daquela senhora. A sua alta idade combinava muito bem com a sua alta estima.

Mas as festas do natal não acabaram. Como diz Pe. Zezinho, na música Estou Pensando em Deus, “Tudo seria bem melhor se o natal fosse um dia...” Até os cristãos se doparam da matemática da publicidade, do reflexo condicionado, do causa-efeito da propaganda, que leva a transformar em produto tudo que encanta aos olhos e desperta o desejo. Até as festas religiosas se tornaram mercadoria de venda. A pressa do mundo já acabou o natal e se prepara para as novas promoções e pacotes de viagem. No mundo das cópias até a fé se torna fugaz e esvanece ao anúncio da próxima curtição. Inclusive, algumas igrejas sabem usar muito bem dessa estratégia maquiavélica sob a máscara da modernidade. Acho que preciso ler Marx de novo!

Ainda falta uma celebração: a festa litúrgica do Batismo do Senhor. Talvez esta nos situe bem no final desse Tempo Litúrgico que, para nós católicos, finda hoje. Como as nossas meditações pretendem uma reflexão sobre os evangelhos do domingo, algo menos pastoral, mais pessoal, indagar a consciência e a atitude de cada cristão. Seja em qual igreja congregue, convido o leitor, mesmo o não aderente, a seguir com esta leitura despretensiosa.

15 O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias.

Aqui poderíamos contextualizar a cena do batismo e a atualidade dessa festa do Batismo do Senhor nos dias atuais, em que a religião está desempenhando o seu papel entre os homens. Já parou pra pensar como é quase inevitável que os homens de Deus se destaquem? A própria massa dos seguidores os promove. A necessidade de sinais se manifesta de diversas formas e fazemos das pessoas sacramentais do que almejamos. Creio que a verdade sobre isto é que, de fato, precisamos de pessoas que nos garantam ser verdade o que dizem. A melhor forma de fazê-lo é, de fato, demonstrá-lo em si mesmas. Como diria S. Paulo: “Sede meus imitadores como eu sou de Cristo.” (1 Cor 11, 1) Assim ninguém se ufana ou rouba o protagonismo de Cristo. A Igreja é Sua e é Ele quem age e vive em nós (Cf. At 17, 28).

16 Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo”.

Eis um exemplo de como ser discípulo ou mesmo um líder cristão. O Batista é desses que não se digna brilhar mais do que a luz. O seu batismo diz respeito à purificação do corpo, muito mais do que um banho de asseio ou pura estética. O rito, provavelmente herdado dos Essênios, demonstra a passagem do sacrifício externo de animais nos ‘altares de Deus’ (Cf. Lv 6, 13) para uma atitude de convertido (Cf. Sl 50, 16 – 17). A pessoa que foi batizada (mergulhada) é o sacrifício (feita sagrada). O batizado foi ‘separado’, dado a Deus.

Algo curioso é que não se lê que alguém tenha se batizado, ou melhor, derramado água sobre si mesmo. Há quem questione sobre batizar crianças ou adultos, porém, talvez, não tenha se dado conta de que mesmo Jesus foi mergulhado por alguém e que isto que faz o batismo. O mergulho comum qualquer um pode se jogar e até se afogar, se não tiver socorro, mas o batismo cristão é, desde sua origem, uma participação comunitária e não uma exposição social. Criança ou adulto, todos somos ajudados no mergulho em Deus. Quem batiza não é maior do que aquele que é batizado, é apenas alguém que conhece o caminho das águas, que tudo lava e leva.

Talvez a consciência da participação no batismo de alguém seja a grande diferença de uma pessoa que oferece a Cristo, à religião e o seu semelhante. Ser ponte para as águas pode ajudar ateus e crentes na reconciliação com Deus. Somos todos ponte para alguém e para alguma coisa. Pois o sejamos o melhor possível, já que a ponte não é o destino, nem é o caminho, é apenas um atalho. Não só batizei como fui escolhido para padrinho por diversas vezes. Este é um parentesco que une mais intimamente os irmãos na fé, quando somos escolhidos para ser alguém mais próximo e até ser chamado de ‘meu’.

21 Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo. E, enquanto rezava, o céu se abriu 22 e o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem querer”.

Outra coisa curiosa é o Imaculado banhar-se sem arrependimento; lavar o que já está limpo; o fogo mergulhado na água. Como diria Heráclito: “Tudo flui.” Dessa vez o que flui não é o rio, mas as águas que escorrem da emersão de Jesus banham o Jordão em fervura desigual. São as águas que caem que não são mais as mesmas, pois foram lavadas no corpo gerado imaculado do Messias. Seu batismo banha as águas e as mergulha no fogo e no Espírito que também lhe faz sombra. Há uma nova geração do mundo. Como no Gênesis, o Espírito paira sobre as águas e a voz é ouvida, e Deus diz, não mais ‘faça-se’ (Cf. Gn 1, 3), mas “Eis”, ou melhor, “Tu és o meu Filho amado.” Está feito; a criação está ‘terminada’; chegou ao seu ápice.

Se até Jesus rezava, como pode ser que passemos sem este diálogo entre filho e pai? Quando me perguntaram por que Jesus rezava, sendo ele Deus com o Pai, respondi que não se conversa com alguém apenas por necessidade, mas também por proximidade. Esses dois extremos disputam lugar no nosso coração, e acabam demonstrando o grau de intimidade entre as pessoas. Logo, o batismo de Jesus, assim como o nosso, expressa o grau de proximidade com Deus, na medida em que tanto a nossa pureza nos aparenta a sua divindade quanto o diálogo que temos com Ele.

Batizar em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo nos faz cristãos e, por isso, como em Jesus, mergulha a pessoa em Deus Pai e no seu Espírito. Agora lhe pergunto: Você se sente uma pessoa mergulhada em Deus? Inundada de Deus? Com Deus Se derramando de dentro para fora? Pois é, como em qualquer mergulho, há sinais de quem se molhou e de quem nada no caminho das águas do batismo cristão. Sei que alguns não nos ensinaram a mergulhar direito, por isso eu insisto, só não deixe de continuar rezando.

Eu desejo que o Espírito Santo lhe faça sombra e que jamais esqueça que você é fruto do amor do Divino Pai. Tenha uma semana abençoada!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Barra dos Coqueiros – SE, 10.01.2016

sábado, 2 de janeiro de 2016

ABRINDO OS COFRES

Epifania do Senhor
Mt 2, 1 – 12

A magia sempre esteve ligada à curiosidade assim como a guerra e o jogo à sabedoria e ao conhecimento. A ciência não nasceu das quimeras míticas, mas precisou delas na sua infância racional. A faculdade de ler o mundo, seus fenômenos, as pessoas e a si mesmo estruturaram as diversas formas de saber e evoluíram as pessoas que defenderam o seu modo de pensar e de se expressar. Apesar de diversas incompreensões históricas, quanto ao modo de conhecer as coisas, hoje nosso olhar e gratidão se volta aos magos do Oriente.

1 Alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém,

A tradição preferiu chamá-los de reis, o Evangelho os chama de magos. Assim eram os que praticavam as ciências ocultas, o conhecimento do espírito, da inteligência, das coisas pensadas e das entidades sentidas. Assim o movimento dos astros não passou despercebido e as plantas passaram a curar enfermidades, mas o melhor remédio sempre foi um conselho dado com sabedoria. A curiosidade levou o homem investigativo a aprender com a observação além do comum das criaturas, no empíreo universal, nos costumes das gerações e suas culturas, do interior das matas ao profundo das águas. Assim esses homens seguiram a magia da estrela de Belém.

2 “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.”

O fenômeno por si já descrevia que algo de primeira grandeza estava acontecendo. Uma estrela veio nos visitar. Não apenas; ela anuncia Quem é maior do que ela. Para onde todas as forças cósmicas se dirigem e de quem surgiram. O criador se fez criatura. O rei pastor é apresentado em sua coorte. Reis, pastores e anjos o cortejam. Os santos e a natureza compõem este momento de adoração.

O Oriente era o mundo conhecido, o mundo antigo, ali representado com os seus sábios notáveis e seu conhecimento, ora prostrado reverente em adoração ao Verbo encarnado, Sabedoria de Deus. A razão e a fé se reencontram celebrando sua reconciliação. O objeto de toda investigação, a razão última de todas as coisas despertou a fé em uma configuração cósmica. Ser fiel ao que se acredita não trai a conclusão da verdade que se busca. Não foi engano seguir uma constatação só porque no final dela se concluiu diferente. Essa busca levou até o resultado final, fazendo com que a sua ‘negação’, inclusive, fosse o seu maior argumento. Não se trai quem busca a verdade assim como não se erra por amar. Porém é necessário coragem para assistir ao esvanecer das estrelas e paciência para esperar o resplendor da verdade.

3 Ao saber disso, o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda a cidade de Jerusalém.

Desde a saudação do anjo a Maria que perturbar-se tornou rotina nas personagens do natal. Podemos dizer que, se há muita perturbação no Seu nascimento, Jesus veio perturbar a comodidade do status quo, essa mania de mesmice. Assim são as novas descobertas. Não dá para saber se o abalo de ânimos entre Herodes e o resto da cidade era o mesmo, se estavam satisfeitos com o seu governo e lamentavam sua decadência ou se torciam para que a descendência de Davi retomasse os tempos áureos de sua monarquia.

6 “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo.”

A política de Jesus é outra. Todavia, quando aprenderemos que o seu reino não é deste mundo (Cf. Jo 18, 36) ou que os pensamentos de Deus não são os nossos (Is 55, 8)? Destrona os poderosos e eleva os humildes (Lc 1, 52), mas deixa que fiquem poderosos e, se não for fiel, depois destrona; espera que sejam humildes, senão jamais serão elevados por Deus e, ainda que estejam por cima, sua altivez será puro orgulho, arrogância e prepotência. Assim são os reis que não são pastores. Em Jesus essas coisas não se dividem, ele é o chefe que arrebanha, pois a promessa de Deus é de que enviaria pastores a Israel, segundo o Seu coração (Cf. Jr 3, 15).

8 “Ide e procurai obter informações exatas sobre o menino.
E, quando o encontrardes, avisai-me, para que também eu vá adora-lo.”

Este rei é tirano e mau. É um meio-irmão judeu megalomaníaco e espoliador a serviço do poder do império romano. Mata sob a máscara da adoração, sacrifica a própria família em suas loucuras, medos e paixões reais, um monstro que sacrifica crianças em ódio a tudo que o ameace e faz dos nascidos sob a luz da estrela do Oriente o sangue derramado no parto de Jesus. No batismo dos protomártires, não sabia Herodes, ele manchava de sangue as portas das casas dos primogênitos, talvez alguma que rejeitara ser hospedaria no natal em Belém, mas que, desta vez, a morte dos filhos dos judeus não fora poupada pela praga do compatriota tão impiedoso quanto o faraó de Moisés. O seu fim também não foi sem dor, que Deus o tenha!

11 Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe.
Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram.
Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra.

Jesus é de todos. Ele é o odre novo em barris velhos, a nova costura que arrebenta sempre que tentarem remendar e esconder rasgos antigos. (Cf. Mt 9, 16s) Ele é a rocha que se abre para que as águas escorram abundantemente a todos que têm sede. (Cf. Nm 20, 8; Jo 7, 37) Quando entenderemos esta abertura das portas dos céus? (Cf. Jo 10; Ap 3, 8) Não podemos querer os presentes dos que O buscam ou nos honrar que adorem em nossos altares ou ainda que deixem o seu caminho e mudem para a nossa estrada sem abrirmos acesso para que todos possam chegar. Sejam pobres ou ricos, pecadores, santos ou anjos, sigam seus animais ou estrelas, as portas precisam estar abertas. A decisão de encontrá-Lo é do peregrino, portanto não convém selecionar quem deve adorá-Lo.

A mística já viu no ouro a realeza, no incenso a divindade e na mirra a Paixão do Cristo. Seu nascimento anuncia toda a Sua vida. Mas também podem ser vistos, no simbolismo dos presentes, a alquimia, os deuses e a bruxaria, rendidos os antigos saberes e forças Àquele pelo qual tudo foi feito (Cf. Col 1, 16; Rm 11, 36), a forma de toda matéria. Ainda precisamos abrir nossos cofres! Ainda precisamos render nossos bens! Seja o conhecimento acumulado que não se abre ao novo nem à fé, sejam os bens acumulados que nos dão a esperança sem Deus. Aquilo do qual não abrimos mão, que é mais importante do que nós mesmos, o nosso Isaac (Gn 22, 1 – 18), ou o talento confiado, um dia será pedido por Aquele que colhe o que não plantou (Mt 25, 26). Se Lhe abríssemos os nossos cofres o que Lhe ofertaríamos?

O catolicismo também vem abrindo os seus cofres e aberto a mão de algumas de suas antigas seguranças. Tem pedido perdão e reconhecido seus erros, seus enganos e nos ensinado que é possível errar sem pecar, a exemplo dela, que não se entende pecadora. Ela tem, ultimamente, muito mais do que no passado, se aberto aos mais diferentes membros e reinaugurado uma prática tardia, ela tem rejeitado o proselitismo e reintegrado nos céus os homens de boa vontade, inclusive os ateus. Uma Igreja que não vai mais atrás dos que estão fora talvez consiga enxergar os que ficaram e lhes servir melhor. Talvez esta hospedaria de passagem acolha os peregrinos transeuntes que decidem ficar mais tempo do que pretendiam e, ainda, talvez consiga ritmar a sua marcha de peregrina junto a todos que O buscam.

12 Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo outro caminho.

Ao que parece, não há conhecimento que não mude algo em quem o descobre. Os magos ainda se comunicam com os sonhos e os interpretam, mas suas atitudes são orientadas por outra sabedoria que não está a serviço deste mundo ou dos poderes terrenos. Que bom é retornar e poder enxergar tudo de novo e de maneira diferente, ver melhor, ver outras coisas e poder modificá-las ainda mais, sobretudo a si mesmo! Não há sabedoria, fé ou religião mais necessária do que aquela que nos converte de fato.

Depois de conhecerem Jesus, os magos convertem sua sabedoria a uma nova realidade e apontam para um conhecimento que desde cedo deveria ter sido melhor conduzido na história da humanidade. Não importa quem ilumine quem, fé e razão se encontram. Não dá mais para servir aos mesmos ídolos e compactuar com os mesmo esquemas e conchavos depois de encontrar a quem tem palavras de vida eterna (Cf. Jo 6, 68), ainda que alguns queiram atravessar esse caminho e ser mais importantes do que o centro. Todo poder foi dado a Jesus (Cf. Mt 28, 18) e não aos chefes deste mundo que o tiranizam, mesmo que sejam de religião. Que eles também O encontrem e O adorem e Lhe abram seus cofres!

Mudar é preciso, sempre. Desejo que a luz de Deus brilhe mais do que quaisquer fantasias em sua vida e que você O adore em espírito e verdade. Que este seja o melhor ano da sua vida!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
Tobias Barreto – SE, 03.01.2016