João 6, 1-15
Caro leitor, estamos exatamente no meio do Ano
Litúrgico, dividido em 34 semanas. As outras culturas com um calendário
próprio, definido a partir dos grandes acontecimentos de sua história, como o
chinês, o árabe, o hebraico e outros. Embora o cristianismo já tenha a sua
diferença na cronologia ocidental, a Igreja possui outra contagem do tempo onde
tenta reviver, em diversas sequências, a história de Jesus, e, com isso,
inseri-la na vida do fiel que participa de suas celebrações.
No centro do Ano Litúrgico B, de São Marcos,
encontramos o capítulo sexto de São João, iniciado nesta semana, mas que
seguirá até ao fim dessa narrativa complexa e conflituosa em torno da ceia de
Jesus. É que o autor desse evangelho reuniu a catequese sobre a eucaristia,
como alimento, nesta cena da multiplicação dos pães e não na última ceia, como
os demais evangelistas. Sabemos que em São João, na última ceia, a dimensão do
serviço é mais evidente, pelo Lava-pés e pelo testamento sacerdotal. Não descure
o leitor apressado de que ambas as leituras se complementam.
Creio que de início valha uma autodenúncia. Tenho
formação teológica, mas minha especialização é em psicologia e formação
sacerdotal, portanto não sou mestre em Bíblia ou um exegeta. Minhas reflexões são
meditações pessoais e inquietações religiosas que, auxiliadas pelas
preocupações pastorais e orientações espirituais entre os irmãos, não deixa
enclausurar as ideias ou mesmo temê-las. Igualmente, sempre gostei de ler, de
meditar as Escrituras e preparar as minhas homilias. Diria até que, de domingo
a domingo, não consigo deixar de fazê-lo.
Este é um momento de retiro semanal onde me sinto
agraciado na presença dAquele que me fala ao coração e me questiona. Escrever
estas reflexões tem sido para mim como que uma pregação do púlpito do meu
computador aos corredores da internet. Assim posso ir além daqueles que conheço
e falar a quem ainda não me conhece. Assim, além do povo, tenho um público e o
evangelho continua sendo proclamado, como disse um padre amigo meu. Ainda mais,
outros irmãos têm se inspirado e publicado, do mesmo modo, as suas reflexões.
Também o povo que seguia Jesus foi além. Seguiu o
mestre até onde Ele podia ser encontrado. Jesus já lhe tinha dado muito, mas
ainda não era o suficiente. Eles já O conheciam, mas queriam saber mais.
Experienciar a presença de Jesus e a sabedoria de Suas palavras, se
autenticamente, provocará uma nova busca. Se há sabor agradável haverá
repetição do deguste. Se o conselho é verdadeiro, ainda que machuque e afaste,
haverá gratidão.
1. Depois
disso, atravessou Jesus o lago da Galiléia (que é o de Tiberíades.) 2. Seguia-o
uma grande multidão, porque via os milagres que fazia em beneficio dos
enfermos. 3. Jesus subiu a um monte e ali se sentou com seus
discípulos. 4. Aproximava-se a Páscoa, festa dos judeus.
A primeira leitura desse domingo, 17º do Tempo Comum,
traz uma cena deveras semelhante a esta de Jesus, no evangelho, mas permitam-me
os estudiosos da Bíblia por esta reflexão, ainda que superficial. Vejo um povo
atravessando o mar a pé enxuto, seguindo um Homem que avança mar adentro para o
outro lado; vejo esse Homem subir um monte e de lá se preocupar com um povo
enfraquecido pela longa viagem; vejo-O lhes dar de comer. A Páscoa judaica
se aproximava, mas o desvio daquele povo os levou a outra passagem. O que vejo
é uma analogia com o Êxodo. É a partir desta proximidade que discorrerei sobre
a minha meditação.
Bem fácil este
artigo se chamaria ‘economia apostólica’, ou seja, as leis da administração
doméstica dos Apóstolos. Quando fiz Teologia, lembro bem que a todo ensinamento
novo de Jesus os professores intitulavam de ‘escola’: escola de Maria, escola
de Filipe, escola de André. Como se cada um tivesse um modo particular de
transmitir os mesmos ensinamentos do Mestre. Desta vez, sugiro uma palavra mais
moderna: ‘economia’, economia de Filipe e economia de André, pois temos
ensinado em demasia, aprendido com dificuldade, e talvez, praticado com vergonha.
5. Jesus
levantou os olhos sobre aquela grande multidão que vinha ter com ele e disse a
Filipe: Onde compraremos pão para que todos estes tenham o que comer? 6.
Falava assim para o experimentar, pois bem sabia o que havia de fazer.
7. Filipe respondeu-lhe: Duzentos denários de pão não lhes
bastam, para que cada um receba um pedaço.
A economia de
Filipe está pautada na confiança do estabelecido, daquilo que se tem. Do tipo
‘sempre foi assim’, nada pode mudar. Uma confiança nas leis de mercado atual e
no que produzimos. Nada parece poder superar as evidências. Sem otimismo ou
empreendedorismo. É a economia do cristão covarde, sem fé, sem confiança no
sobrenatural, sem coragem de se lançar. Uma confiança aparente que visa
proteger o status quo. Confia apenas
em si mesmo e em seus bens, no dízimo e na poupança. Suas leis econômicas são
poupar, guardar, economizar, juntar, nada de repartir. Sempre tem uma desculpa
para convencer os demais de que precisa de mais. Quem sabe é daqueles que
sempre querem mais. Para os seus seguidores mais é sempre menos.
8. Um
dos seus discípulos, chamado André, irmão de Simão Pedro, disse-lhe: 9.
Está aqui um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixes... mas
que é isto para tanta gente?
Já as leis
econômicas de André ensinam o contrário de Filipe. Acredita na inovação e na
insuficiência. É um visionário. Sabe ver expansão onde o mercado se fecha. Cria
as suas oportunidades. Usa o que tem. Consegue enxergar na própria comunidade a
sua subsistência. Não espera de fora ou das autoridades. Cria as suas
expectativas. Não se espelha ou inveja o sonho alheio. Tem luz própria e
iniciativa. É humilde e reconhece apenas o que tem. É um sonhador, porém não é
sonâmbulo aleatório, empolgado em vantagens e falsas esperanças. Não sonha em
demasia alienando os seus seguidores. Eis o que temos, diz André: “um menino”.
Um menino é a
promessa do Natal. Que lindo projeto! ‘Temos um começo’, disse André a Jesus.
Não sei se André duvidou quando disse: “...mas que é isto para tanta gente?” ou
provocava também o seu Mestre. Fato é que todo novo empreendimento exige uma
avaliação séria e proporcional, como quando Jesus fala em planejar a construção
ou uma guerra. Não somos loucos megalomaníacos, fazer, fazer, construir,
construir, não importando de onde venham as ajudas, pois se é para Deus tudo é
santificado. Só neste caso, para alguns, os fins justificam os meios. Assim
nascem cristãos corruptos.
10. Disse
Jesus: Fazei-os assentar. Ora, havia naquele lugar muita relva. Sentaram-se
aqueles homens em número de uns cinco mil. 11. Jesus tomou os
pães e rendeu graças. Em seguida, distribuiu-os às pessoas que estavam
sentadas, e igualmente dos peixes lhes deu quanto queriam. 12. Estando
eles saciados, disse aos discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram, para que
nada se perca. 13. Eles os recolheram e, dos pedaços dos cinco
pães de cevada que sobraram, encheram doze cestos.
Quando a
comunidade decide participar e a humildade sincera abre as mãos daqueles que
têm pouco o deserto verdeja. Quando dispomos de tudo, sem esconder ou mentir, o
‘menos se torna mais’. Quando sete não for mais apenas um número e a perfeição
de sua simbologia com os dias da criação for uma convicção então saciaremos a
fome, seja ela qual for. Não esconderemos mais o que temos. Não nos
esconderemos mais atrás das (más) caras e dos papeis sociais, nem na falta de
tempo, nem na desculpa. Sempre me questionei diante do mendigo à porta quando
respondemos ‘perdoe!’, bem alto, de dentro de casa, como quem manda embora. Por
que perdoe? Talvez a consciência da gravidade em despedir o semelhante sem lhe
aliviar o peso das necessidades. Ah, mas também tem a justificativa dos riscos
da violência. Assim é a economia de Filipe, sempre cheia de estatísticas.
14. À
vista desse milagre de Jesus, aquela gente dizia: Este é verdadeiramente o
profeta que há de vir ao mundo. 15. Jesus, percebendo que
queriam arrebatá-Lo e fazê-Lo rei, tornou a retirar-se sozinho para o monte.
Esta perícope
começa com Jesus descendo do monte e termina com Ele subindo em retorno. Algo tão
teatral e plástico, espetaculoso. Uma cena nos moldes daquelas narrativas de
Moisés no deserto. Porém, qual de nós sairia da multidão em plena aclamação? Já
vi muitos encerramentos de festa de padroeiro e inaugurações como um sensor da
comunidade, se estamos ou não dando certo naquele lugar. Parece que para Jesus
esse tipo de sucesso social ou mesmo de aceitação como liderança econômica e
administrativa não é bem o reconhecimento que Ele espera.
Diria ainda que
a aceitação de Sua Pessoa temporal parece comprometer a missão que o Pai lhe
confiou. Ele sabe que está de passagem e que mesmo o amor à Sua Pessoa precisa
ultrapassar o apego físico. Isto é algo difícil de compreender mesmo nos dias
de hoje, quando cremos sem tê-Lo visto e quando alguns buscam justamente isto:
ser reconhecido e aclamado, ou mesmo indicado a algum cargo público. Quantas
lideranças de comunidade ingressaram no poder público? Quantas obras pastorais
se transformaram em associação ou cooperativa? Mas se até as igrejas têm
personalidade jurídica e muitos religiosos ingressam na carreira política! Sei
que muitos me criticarão por esta observação. De fato é mais fácil negar o que
digo do que o que Jesus fez.
Por fim, desejo
a todos, cristãos ou não, que exercitemos a economia de comunhão, onde menos se
torna mais, quando cada fragmento lembra que é parte de um todo, e que se
decidir continuar pedaço jamais (se) completará. Desejo que arrisque; que se
questione, que decida. Que creia no impossível e no invisível. Ame a si mesmo
tanto que perceba o quanto alguém precisa do seu amor. Desejo também que Deus
nos encontre dentro de nós mesmos. Ele está presente em tudo que fez, é o
artista que assina a Sua obra, porém o Seu diálogo é íntimo e pessoal, e disto Ele
não abre mão. Também o crente não abra mão do seu papel enquanto fiel, pois a
Igreja é o seu corpo e quem tiver o seu dom exerça-o para o crescimento de
todos.
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
26.07.2015