Há quem pense que espiritualidade é sentimentalismo e que fé
se antepõe à razão. Queria saber o que diriam essas pessoas ao ver Jesus
despertar a fé dos discípulos abrindo-lhes a inteligência. Mas antes ele
apresenta três pequenas situações que mais parecem graus ou tipos de entraves à
fé inteligente. Costumava se pensar que era preciso ser cristão de fé
inteligente para passar por estas situações, contudo a passagem do evangelho
deste domingo, nas missas católicas, apresenta uma ordem e enredo divergente.
A primeira situação é a que Jesus encontra os discípulos
após sua ressurreição: cansados, cheios de medo, assustados, preocupados, com
dúvidas no coração (Jo 24, 38). Conheço muita gente que usa essas situações
como argumento de desistência ou fracasso, não só na igreja mas na vida. De
fato o que se esperava de quem tinha uma esperança, daqueles que acompanharam e
escutaram as promessas, era uma atitude diferente. Mas se fosse assim não seria
humano! Tudo isso que lemos nesse reencontro de Jesus com seus discípulos
revela apenas a situação a qual ele veio dar novo sentido. A alegria não é
minha, nem o sucesso ou a verdade do que prego. Ela é uma pessoa e esta pessoa
é Jesus. Se desanimamos é porque há motivos. Jesus tem uma sabedoria única em
lidar com essas situações, a saber, ele as acolhe e dialoga com elas. Sua
resposta é completamente outra ao coração que titubeia: “a paz esteja
convosco!” (Jo 24, 36)
Logo, o primeiro ato de uma fé racional, uma fé que pensa e
reflete, é o de reconhecer-se e não ter vergonha de lamentar, chorar, dizer-se
triste por aquilo que a religião lhe faz ou mostra. É neste nível que se
encontram muitos irmãos, alguns até por causa da própria fé que seguem e
defendem. Questionar-se e àquilo que segue nunca foi ou será ignorância,
contudo não saber os por quês do consentimento da razão ou da fé cega talvez
seja a pura aberração religiosa. Seria um lamento sem experiência e um
conhecimento sem explicação. “Pro que choras?” (Jo 20, 15) Esta é a primeira
palavra do ressuscitado a Maria Madalena.
A segunda situação de prova ao prêmio da inteligência do
crente é esta: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e
vede!” (Jo 24, 39). Confirma que o ressuscitado é o crucificado, que a dor e o
abandono, o pecado e a morte, não são ilusões nem podem ser ignorados. Lamento
deveras quando alguém reza para não sofrer. Vejo este sem entender o que passa
e por quem sofre. Jesus morre para que ninguém pague pelos próprios pecados.
Padecemos apenas as suas consequências. Ele mostra que todo sofrimento tem uma
finalidade, é meio e tem um fim. Desde o judaísmo, passando pela cruz,
definitivamente o cristianismo não é uma religião de prazeres e satisfações,
mas de desagravo, sufrágio e intercessões. Assombrosa é uma vida nova sem luta,
ou conversão fácil e imediata sem o banho de sangue do redentor. Quase o
escutamos dizer: “Toca nas feridas e crê!”
Logo a segunda expressão de uma fé que se explica é uma fé
que se manifesta e que é visível em carne e osso. A prova racional da fé são os
joelhos calejados e as mãos postas, ainda mais as marcas que o credo deixou no
corpo e na vida. Sangue, suor e lágrimas de um crente demonstram a sua
capacidade de reflexão e entendimento, de apreensão e transmissão do conteúdo.
Ele entendeu e sabe dizer o que é crer.
A terceira situação, ou degrau rumo à sabedoria pascal de
Jesus é o alimento. Tema tão caro em suas pregações e elevado à condição mais
alta da natureza após a sua encarnação. A criação se faz criador. A ânsia mais
profunda das mitologias e da própria ciência. A inversão da mesa e dos
ponteiros. E verdade, o alimento revela quem somos. Da mesa à fome “Tendes aqui
alguma coisa de comer?” (Jo 24, 41) a tentação do deserto se transformou em
dádiva. Naquela ceia que já era missa ele reúne o sentido de sua presença:
entre irmãos não se admite passar fome. Isto não seria cristão. Repartir,
dividir, dar do que tem, desprender-se, pobreza verdadeira, desapego, liberdade
interior, não prender-se a si ou ao que tem, ser doado, este é o autêntico
jejum.
Logo não haverá razão lógica que sustente uma fé inútil, já
que não se traduz em obras, segundo São Paulo que diz: “Mostra-me tua fé sem
obras que te mostro a minha fé pelas minhas obras” (Tg 2, 18). Mas prefiro ainda
esta prova cabal de Jesus quando afirma que “tive fome e me deste de comer”
como a primeira atitude daquele rebanho que será acolhido na separação entre
bons e maus: “vinde, benditos de meu Pai.” (Mt 25,35) Ouso em afirmar que fé individual
ou religião de acúmulos e ostentações tem ouvido mouco aos ensinamentos e
apelos do seu Mestre no eco de tantos irmão que secam suas gargantas no mesmo
apelo aos sábio das crenças: “Tenho sede!” (Jo 19, 28)
Parece-nos e a Jesus que um coração tíbio, o medo do
sofrimento e a omissão na partilha são opostas à virtude intelectual da fé e
escondem as provas do que se crê (cf. 1Pd 3, 15). Fiel sábio é aquele que em
cada fraqueza pensa em Jesus e reinterpreta sua situação. Após falar das três
elencadas acima “Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para
entenderem as Escrituras.” (Jo 24, 46) Quem sabe nossa ignorância religiosa não
esteja embargada por alguma delas?
Quem sabe o problema de alguns cristãos que não entenderam a
mensagem de seu mestre não seja o medo de enfrentar suas fraquezas pessoais e
as mascare sem sinceridade. Quem sabe não seja o apego as seguranças pessoais e
zona de conforto, o bem estar e status que conquistou mesmo na igreja e não
largue o osso rosnando e rangendo dentes a quem se aproxima, incapaz de perder,
humilhar-se ou ferir-se por alguém. Quem sabe não seja o capital acumulado, a
barriga saciada e o lucro que acumula cada vez mais explorando as consciências
mais simples. É sempre “venha a nós o vosso reino” e nada de “seja feita a
vossa vontade”. Esquece que a salvação já foi comprada e paga com o sangue do
redentor.
Quem sabe qual o problema de quem, dessa ou daquela
religião!? Mas a solução está aí. Que se abram as inteligências, para que o
mandato missionário do Cristo, como ele disse, “vós sereis testemunhas de tudo
isso” (Jo 24, 49a), seja em cada um libertação de alma, corpo e mente.
20.04.2015
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