sábado, 13 de fevereiro de 2016

O CORINGA DO DIABO

Lc 4, 1 – 13
1º Domingo da Quaresma Ano C

O evangelho desta vez traz um encontro de Jesus com o diabo, em diálogo brando e cheio de citações bíblicas, poderia se passar por uma conversa entre religiosos, se não considerássemos a intenção diabólica de usar da bíblia para enganar quem a segue, usando-a em benefício próprio.

Outro grande engano do diabo é considerar apenas a humanidade de Jesus e tentá-Lo sob as fraquezas da humanidade. Não apenas a fome, mas a saciedade, não ter necessidade que não seja suprida; não apenas o poder sobre as coisas, mas a glória das pessoas e seu reconhecimento; não apenas a fé, mas tomar o lugar de Deus nas suas decisões.

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. 2 Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome.

A tradição mais comum costuma localizar as tentações de Jesus durante os quarenta dias no deserto e apenas essas três. Não ignore o leitor que Bíblia não é jornal, portanto, não está preocupada em relatar as coisas tal como ocorreram ou contar as suas histórias. Não estranhe essa afirmação e lembre que Bíblia é um livro de espiritualidade; está repleta da sabedoria de Deus que é loucura para os homens. Os números, as localizações geográficas, os personagens, todos apontam para a fé de Israel e dos cristãos; vale procurar as cenas da fé que se repetem em Jesus.

Quarenta anos e quarenta noites passou Noé e sua família dentro de uma barca, enquanto o mundo era lavado pelo dilúvio (Gn 7, 4. 12). Quarenta dias e quarenta noites duraram o jejum de Moisés, quando recebeu os 10 mandamentos (Ex 34, 28) e de Elias, quando precisou subir a montanha de Deus para rezar (I Rs 19, 8); além dos quarenta anos da travessia do povo de Israel no deserto (Nm 14, 33), antes de encontrarem a terra prometida e a purificação das influências egípcias.

3 O diabo disse, então a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. 4 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’ ”.

A tentação vem no momento de fraqueza do corpo, não do espírito. Sentimentos e emoções titubeiam a mente e podem levar à desistência da missão profética. Na tristeza das perseguições e no primeiro dia de deserto, o cansaço e a fome adormecem o profeta Elias que se deitara para morrer (I Rs 19, 4). Elias é servido pelo anjo, mas Jesus é tentado ainda mais.

O pão é o maior dilema material da humanidade. Toda a nossa existência quase se resume em ter o que comer. A base da produção, da subsistência, da vida familiar é ter o alimento; disto depende o trabalho e a saúde. Até o romantismo precisa de uma mesa sedutora. O escândalo da fome é uma tentação diabólica, talvez o maior motivo da corrupção do homem. A tentação original se dá na oferta do fruto proibido (Gn 3). Parece que ter o que comer é muito mais do que alimentar-se e esconde a maldição de comer do próprio suor (Gn 3, 19).

Quando Jesus diz que “Não só de pão vive o homem”, talvez quisesse dizer que não se faça do comer, nem por gula, motivo para pecar, por usura ou ganância. A saciedade insaciável é querer ter cada vez mais, a ponto de encontrar nas posses materiais a definição da existência. O ‘ter’ se põe no lugar do ‘ser’. Possuir bens passa a ser a maior vantagem da pessoa, a sua seguridade. Confia não em si, nem nos seus, mas no quanto tem. Há pessoas que não se contentam em precisar de algo ou alguém e não estar à mão. Suas carências são insaciáveis e sufocantes a si mesmas e tantos quantos se lhe aproximem. A tentação das posses é um abismo de acúmulos tão diabólico que, ao seu menor presságio, Jesus o renega. Antes a fome a ter o que não é Seu. De fato, comem pedras os insaciáveis que se alimentam de tudo o que veem à sua volta.

4 O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem quiser. 7 Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”.

Já é sabido que um por cento dos oito bilhões de habitantes do planeta detém a mesma riqueza dos noventa e nove restantes. Outra pesquisa aponta sessenta e sete pessoas com noventa e nove por cento da riqueza de humanidade e apenas um por cento restante é que fica dividido entre os demais oito bilhões. Contudo, esta riqueza vira miséria nas mãos de tanta gente e riqueza mesmo apenas naqueles míseros um por cento. Poder, influência, reconhecimento é o que muitos buscam sob o véu do progresso e do sucesso na vida. A quem pertencem essas forças? O diabo se declara o seu dono quem a distribui ao seu bel prazer. Se estas coisas vêm realmente do diabo, quem ainda as quer? Acredito que o leitor já começa a se questionar se suas atitudes são decisões próprias ou tentações diabólicas.

8 Jesus respondeu: “A Escritura diz:
‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele só a ele servirás’ ”.

Ter em si mesmo o seu maior ídolo; ufanar-se em se achar o melhor ou que seu sucesso depende de suas próprias posses e inteligência; achar-se melhor favorecido do que o seu vizinho, como se você fosse de uma linhagem ou matéria de melhor qualidade, talvez seja uma das tentações de adorar ídolos ou de se fazer objeto de adoração de outrem. Quantos querem ser modelo de alguma coisa e ter seu nome lembrado? Alguns se acham tão essenciais que não admitem ser deixados de lado nem nas mínimas coisas. Outros foram tratados assim e se acostumaram em ser venerados.

9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: “Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ 11 E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’ ”.

Sempre me intrigou essa tentação! A ousadia do diabo foi tamanha que arriscou confundir Jesus na casa de Seu Pai. Para mim essa é a tentação da religião, a mais grave e perigosa para qualquer religioso. “Pobres sempre tereis” (Jo 12, 8) e “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), são frases de Jesus que justificam a condição terrena e efêmera desses pecados. Todavia, a tentação no Templo, sobre a proximidade a Deus, demonstra uma situação deveras delicada.

Existe a possibilidade de tentar Deus. Jesus já estava sendo tentado, mas tentar Deus era o coringa do baralho do diabo, quando ousa enganar Jesus. O diabo tem uma meta. Ele não quer apenas nos tentar, mas nos quer levar a tentar Deus. Por algum motivo ele não pode chegar ao Pai com suas armadilhas e, por isso, engana a humanidade a tentar que Deus faça algo por nós por causa de suas seduções. Ele, o diabo, pretende duas coisas: ser o autor primeiro de alguma atitude de Deus em relação aos homens e induzi-Lo ao erro.

Vê-se quão diabólica é a atitude de quem manipula Deus ou ao menos o bota de frente para mascarar as próprias atitudes. A ‘vontade de Deus’ e a ‘palavra de Deus’ se transformam em capricho de poucos e voz ou assinatura de menos ainda.

12 Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’ ”.

O que mais lamento em algumas igrejas é a capacidade de fazer de Deus o seu boneco, enquanto ela é seu ventríloquo. Numa tal igreja os fiéis viram fantoches e marionetes no grande palco das naves dos templos, onde os artistas dissimulam de suas tribunas e presbitérios. O espetaculoso do diabo nesse evangelho consegue misturar deserto com montanha, reinos e templo, e reunir uma panorâmica de desolação, fausto e religião, ao mesmo tempo. Usar da religião ou de Deus para a promoção pessoal é o pior de todos os estrelismos, pois além de medíocre, da areia ao céu, é grave o pecado de fazer de Deus um fetiche.

13 Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.

Depois de vermos essa disputa ideológica, maliciosa e maquiavélica, podemos entender que se tratava de uma guerra de intenções, onde o diabo escondia sua última cartada. Jesus não precisou de artimanhas para fazê-lo sair de sua vida. Apesar da fome, da pobreza e da aridez, o coração de Jesus não se deixou vender benefícios e privilégios. Em religião não se negociam vantagens. Acho que poderíamos dizer ao diabo, iluminados por este evangelho: Você pode até me tentar ou ameaçar, mas jamais terá o meu coração e as minhas atitudes.

Desejo uma Quaresma piedosa, sem fantasias. Que nosso jejum, esmola e oração não virem simbolismo vazio, artífice dos homens e drible do diabo. Que nossa Via Sacra trilhe as ruas de Jesus, ainda não saneadas.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
14.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

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