Lc 4, 1 – 13
1º Domingo da Quaresma Ano C
O evangelho desta vez traz um
encontro de Jesus com o diabo, em diálogo brando e cheio de citações bíblicas,
poderia se passar por uma conversa entre religiosos, se não considerássemos a intenção
diabólica de usar da bíblia para enganar quem a segue, usando-a em benefício
próprio.
Outro grande engano do diabo é
considerar apenas a humanidade de Jesus e tentá-Lo sob as fraquezas da
humanidade. Não apenas a fome, mas a saciedade, não ter necessidade que não
seja suprida; não apenas o poder sobre as coisas, mas a glória das pessoas e
seu reconhecimento; não apenas a fé, mas tomar o lugar de Deus nas suas
decisões.
1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do
Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. 2 Ali foi tentado pelo
diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso,
sentiu fome.
A tradição mais comum costuma
localizar as tentações de Jesus durante os quarenta dias no deserto e apenas
essas três. Não ignore o leitor que Bíblia não é jornal, portanto, não está
preocupada em relatar as coisas tal como ocorreram ou contar as suas histórias.
Não estranhe essa afirmação e lembre que Bíblia é um livro de espiritualidade;
está repleta da sabedoria de Deus que é loucura para os homens. Os números, as
localizações geográficas, os personagens, todos apontam para a fé de Israel e
dos cristãos; vale procurar as cenas da fé que se repetem em Jesus.
Quarenta anos e quarenta noites
passou Noé e sua família dentro de uma barca, enquanto o mundo era lavado pelo
dilúvio (Gn 7, 4. 12). Quarenta dias e quarenta noites duraram o jejum de
Moisés, quando recebeu os 10 mandamentos (Ex 34, 28) e de Elias, quando
precisou subir a montanha de Deus para rezar (I Rs 19, 8); além dos quarenta
anos da travessia do povo de Israel no deserto (Nm 14, 33), antes de
encontrarem a terra prometida e a purificação das influências egípcias.
3 O diabo disse, então a Jesus: “Se és Filho
de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. 4 Jesus respondeu: “A Escritura
diz: ‘Não só de pão vive o homem’ ”.
A tentação vem no momento de
fraqueza do corpo, não do espírito. Sentimentos e emoções titubeiam a mente e
podem levar à desistência da missão profética. Na tristeza das perseguições e
no primeiro dia de deserto, o cansaço e a fome adormecem o profeta Elias que se
deitara para morrer (I Rs 19, 4). Elias é servido pelo anjo, mas Jesus é
tentado ainda mais.
O pão é o maior dilema material da
humanidade. Toda a nossa existência quase se resume em ter o que comer. A base
da produção, da subsistência, da vida familiar é ter o alimento; disto depende
o trabalho e a saúde. Até o romantismo precisa de uma mesa sedutora. O
escândalo da fome é uma tentação diabólica, talvez o maior motivo da corrupção
do homem. A tentação original se dá na oferta do fruto proibido (Gn 3). Parece
que ter o que comer é muito mais do que alimentar-se e esconde a maldição de
comer do próprio suor (Gn 3, 19).
Quando Jesus diz que “Não só de pão
vive o homem”, talvez quisesse dizer que não se faça do comer, nem por gula,
motivo para pecar, por usura ou ganância. A saciedade insaciável é querer ter
cada vez mais, a ponto de encontrar nas posses materiais a definição da
existência. O ‘ter’ se põe no lugar do ‘ser’. Possuir bens passa a ser a maior
vantagem da pessoa, a sua seguridade. Confia não em si, nem nos seus, mas no
quanto tem. Há pessoas que não se contentam em precisar de algo ou alguém e não
estar à mão. Suas carências são insaciáveis e sufocantes a si mesmas e tantos
quantos se lhe aproximem. A tentação das posses é um abismo de acúmulos tão
diabólico que, ao seu menor presságio, Jesus o renega. Antes a fome a ter o que
não é Seu. De fato, comem pedras os insaciáveis que se alimentam de tudo o que
veem à sua volta.
4 O diabo levou Jesus para o alto,
mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e lhe disse: “Eu te
darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim
e posso dá-lo a quem quiser. 7 Portanto, se te prostrares diante de mim em
adoração, tudo isso será teu”.
Já é sabido que um por cento dos
oito bilhões de habitantes do planeta detém a mesma riqueza dos noventa e nove restantes. Outra
pesquisa aponta sessenta e sete pessoas com noventa e nove por cento da riqueza
de humanidade e apenas um por cento restante é que fica dividido entre os
demais oito bilhões. Contudo, esta riqueza vira miséria nas mãos de tanta gente e riqueza mesmo
apenas naqueles míseros um por cento. Poder, influência, reconhecimento é o que
muitos buscam sob o véu do progresso e do sucesso na vida. A quem pertencem
essas forças? O diabo se declara o seu dono quem a distribui ao seu bel prazer.
Se estas coisas vêm realmente do diabo, quem ainda as quer? Acredito que o leitor
já começa a se questionar se suas atitudes são decisões próprias ou tentações
diabólicas.
8 Jesus respondeu: “A Escritura diz:
‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele só a
ele servirás’ ”.
Ter em si mesmo o seu maior ídolo;
ufanar-se em se achar o melhor ou que seu sucesso depende de suas próprias
posses e inteligência; achar-se melhor favorecido do que o seu vizinho, como se
você fosse de uma linhagem ou matéria de melhor qualidade, talvez seja uma das
tentações de adorar ídolos ou de se fazer objeto de adoração de outrem. Quantos
querem ser modelo de alguma coisa e ter seu nome lembrado? Alguns se acham tão
essenciais que não admitem ser deixados de lado nem nas mínimas coisas. Outros
foram tratados assim e se acostumaram em ser venerados.
9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém,
colocou-o sobre a parte mais alta do Templo e lhe disse: “Se és Filho de Deus,
atira-te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: “Deus ordenará aos seus anjos
a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ 11 E mais ainda: ‘Eles te levarão
nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’ ”.
Sempre me intrigou essa tentação! A
ousadia do diabo foi tamanha que arriscou confundir Jesus na casa de Seu Pai.
Para mim essa é a tentação da religião, a mais grave e perigosa para qualquer
religioso. “Pobres sempre tereis” (Jo 12, 8) e “O meu reino não é deste mundo”
(Jo 18, 36), são frases de Jesus que justificam a condição terrena e efêmera
desses pecados. Todavia, a tentação no Templo, sobre a proximidade a Deus,
demonstra uma situação deveras delicada.
Existe a possibilidade de tentar
Deus. Jesus já estava sendo tentado, mas tentar Deus era o coringa do baralho
do diabo, quando ousa enganar Jesus. O diabo tem uma meta. Ele não quer apenas
nos tentar, mas nos quer levar a tentar Deus. Por algum motivo ele não pode
chegar ao Pai com suas armadilhas e, por isso, engana a humanidade a tentar que
Deus faça algo por nós por causa de suas seduções. Ele, o diabo, pretende duas
coisas: ser o autor primeiro de alguma atitude de Deus em relação aos homens e
induzi-Lo ao erro.
Vê-se quão diabólica é a atitude de
quem manipula Deus ou ao menos o bota de frente para mascarar as próprias
atitudes. A ‘vontade de Deus’ e a ‘palavra de Deus’ se transformam em capricho
de poucos e voz ou assinatura de menos ainda.
12 Jesus, porém, respondeu: “A Escritura
diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’ ”.
O que mais lamento em algumas
igrejas é a capacidade de fazer de Deus o seu boneco, enquanto ela é seu
ventríloquo. Numa tal igreja os fiéis viram fantoches e marionetes no grande
palco das naves dos templos, onde os artistas dissimulam de suas tribunas e
presbitérios. O espetaculoso do diabo nesse evangelho consegue misturar deserto
com montanha, reinos e templo, e reunir uma panorâmica de desolação, fausto e
religião, ao mesmo tempo. Usar da religião ou de Deus para a promoção pessoal é
o pior de todos os estrelismos, pois além de medíocre, da areia ao céu, é grave
o pecado de fazer de Deus um fetiche.
13 Terminada toda a tentação, o diabo
afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.
Depois de vermos essa disputa
ideológica, maliciosa e maquiavélica, podemos entender que se tratava de uma
guerra de intenções, onde o diabo escondia sua última cartada. Jesus não
precisou de artimanhas para fazê-lo sair de sua vida. Apesar da fome, da
pobreza e da aridez, o coração de Jesus não se deixou vender benefícios e
privilégios. Em religião não se negociam vantagens. Acho que poderíamos dizer
ao diabo, iluminados por este evangelho: Você pode até me tentar ou ameaçar, mas
jamais terá o meu coração e as minhas atitudes.
Desejo uma Quaresma piedosa, sem
fantasias. Que nosso jejum, esmola e oração não virem simbolismo vazio,
artífice dos homens e drible do diabo. Que nossa Via Sacra trilhe as ruas de
Jesus, ainda não saneadas.
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
14.02.2016
Pe.
Adeilton Santana Nogueira
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