quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

04. O SER-AÍ E SUAS INTERPRETAÇÕES


Entre interpretar e ser interpretado o homem trava uma disputa às vezes ingênua. Enquanto vive e olha à sua volta, serve-se apenas do que lhe interessa, sem se dar conta do mundo que o circula e de cumprir o seu papel mais notável, o de dar sentido a toda a existência, não apenas a sua. Mas, é a partir da sua existência, do ser aí no mundo, de sua relação com as coisas e com os demais seres, que se tornam existentes, à medida em que o Dasein se dá conta deles.

Ainda mais, toda disputa é ingênua. Esta tarefa de significação e interpretação, em nome do progresso, demonstra seu maior engano quando outros homens se antecipam a seus semelhantes e lhe significam a existência, antecipando-lhes teorias pré-fabricadas, as suas. São teóricos de plantão sem considerar a existência particular de cada Dasein que também significam e dão sentido ao que está à sua volta. Avio ao leitor que apesar de algumas vezes a filosofia parecer complexa, vale a leitura dessas linhas e o esmero paciente em reler o que não entendeu à primeira vista, para que sigamos numa melhor compreensão, inclusive do seu Ser-Aí onde você está.

Do que vimos nos artigos anteriores, cabe um alerta severo do nosso autor. Heidegger critica a filosofia tradicional, afirmado que seu fracasso consiste precisamente na canalização que esta faz da investigação do Ser para uma antropologia. Em vez de reconhecer o lugar do homem no mundo, a posição do homem como ser entre todos os seres, a filosofia tradicional converteu o mundo como algo que existe por e para nós. Um homem analisado e não um homem analítico. Um ser significado pelo seu contexto e não um ser significador. Um homem instrumento ou objeto e não um Ser. Um Ser que é lido como ente por uma ciência que converte em objeto de estudo aquele único que é capaz de estudar as ciências e os seres: o homem. O que você acha, ele deve ser compreendido pessoalmente ou segundo os outros homens?
“O processo do despontar da ‘antropologia’ não é visado aqui como a aparição de um determinado direcionamento e de uma determinada corrente na “historiologia” da “filosofia” e da “metafísica”, mas é conhecido como uma consequência em termos da história do ser do abandono do ser pelo ente”. (HEIDEGGER. Meditação. 2010, p.187)

Para o filósofo alemão, o Dasein não pode ser analisado simplesmente como um ente. Sua meta é ousada e desafiadora. Ele propõe o esquecimento do Ser enquanto concebido pela tradição filosófica ocidental e refaz as concepções dos primeiros filósofos na tentativa da descoberta do Ser. Para ele, os primeiros gregos produziam um conhecimento distinto do homem e do Ser. Platão confere ao ser um lugar no mundo das ideias e assim todos os demais filósofos vão se distanciando, segundo Heidegger, o sentido do ser.

Portanto, o tema do ser, no qual tem início a filosofia ocidental, tem de ser relido a partir desta perspectiva de uma ontologia fundamental, que busca a possibilidade de questionar o Ser, o Dasein, isentando-o de toda e qualquer particularidade, mas promovendo uma investigação dos entes como um todo.
“A investigação ontológica mesma, retamente compreendida, dá à pergunta pelo ser sua primazia ontológica, mas além da mera retomada de uma tradição venerável e do aprofundamento em um problema até agora escuro. Mas esta primazia na ordem objetivo-científica não é única”. (HEIDEGGER, Ser y Tiempo, p.187)

Sendo assim, vale frisar, que Heidegger levanta e mantém clara a distinção dos conceitos de ‘Ente’ e ‘Ser do Ente’, considerando este segundo como objeto da ontologia, enquanto o primeiro está sujeito às ciências ônticas. Para ele ontologia é o estudo que considera o ser que focaliza o ser do ente. Já ciência ôntica é consideração, teórica ou prática, do ente enquanto tal, na sua particularidade, sem levar em conta seu ser. Embora distintas, ambas são ângulos diversos de interpretação do Dasein: a ontologia deseja alcançar o significado do Ser, enquanto as ciências ônticas visam a descrição exterior das características do Dasein que o diferenciam de outras entidades. Contudo, há posteriormente um entrelaçamento de ambas.

Para Heidegger, não se pode limitar o pensamento sobre a essência humana a uma definição enfática do homem, mas reconhecer que o que o distingue é a sua relação com o Ser. Logo, o Dasein goza de privilégio em relação aos outros seres, pois lhe é possível questionar o Ser e compreendê-lo. Só o homem está apto para pensar o próprio ser e nos demais entes. Só ao Dasein é possível esta análise, pois só ele pode empreender este entendimento do ser:
“O Dasein não é tão somente um ente que se apresenta entre outros entes. O que o caracteriza onticamente é que este possui em seu ser este mesmo ser. A constituição do ser do Dasein implica então que o Dasein tem em seu ser uma relação de ser com seu ser. E isto significa, por sua vez, que o Dasein se compreende em seu ser de alguma maneira e com algum grau de explicitação. É próprio deste ente o que com e por seu ser este se encontre aberto para si mesmo. A compreensão do ser é, ela mesma, uma determinação do ser do Dasein.” (Ibidem)

O homem é o único Ser-aí, o Dasein. Ele existe imediatamente em um mundo, isto é, na realidade, na vivência cotidiana, em relação com os outros entes. O Ser-aí é o homem na sua realidade limitada e próxima, entregue ao seu destino:
“Este modo de ser é próprio do homem. A existência assim entendida não é apenas o fundamento da possibilidade da razão, “ratio”, mas a existência é aquilo em que a essência do homem conserva a origem de sua determinação. A existência somente se pode dizer da essência do homem, isto é, somente a partir do modo humano de “ser”; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabemos, nos limites da nossa experiência, está iniciado no destino da existência. (HEIDEGGER, Carta sobre humanismo. 1991, p.10)

Ser-Aí se torna existir. O homem se define a si mesmo enquanto experiência o conhecimento dos seres. Existir é interpretar o mundo e a si mesmo. A compreensão de Ser é a saída primordial da caixa preta em que o homem, desde sempre, é aprisionado pelos outros homens. O problema filosófico fundamental é a questão do Ser. O que são todas as coisas? Mesmo os primeiros filósofos se enganaram quando colocaram nas coisas a determinação do Ser. Engano porque eles é que diziam das coisas o que diziam que as coisas diziam. O Ser, ou melhor, Ser é a busca incessante do conhecimento. Esta é a aventura da existência, nosso próximo artigo.

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