Entre
interpretar e ser interpretado o homem trava uma disputa às vezes ingênua.
Enquanto vive e olha à sua volta, serve-se apenas do que lhe interessa, sem se
dar conta do mundo que o circula e de cumprir o seu papel mais notável, o de
dar sentido a toda a existência, não apenas a sua. Mas, é a partir da sua
existência, do ser aí no mundo, de sua relação com as coisas e com os demais seres,
que se tornam existentes, à medida em que o Dasein
se dá conta deles.
Ainda mais, toda
disputa é ingênua. Esta tarefa de significação e interpretação, em nome do
progresso, demonstra seu maior engano quando outros homens se antecipam a seus
semelhantes e lhe significam a existência, antecipando-lhes teorias
pré-fabricadas, as suas. São teóricos de plantão sem considerar a existência
particular de cada Dasein que também
significam e dão sentido ao que está à sua volta. Avio ao leitor que apesar de
algumas vezes a filosofia parecer complexa, vale a leitura dessas linhas e o
esmero paciente em reler o que não entendeu à primeira vista, para que sigamos
numa melhor compreensão, inclusive do seu Ser-Aí onde você está.
Do que vimos nos
artigos anteriores, cabe um alerta severo do nosso autor. Heidegger critica a
filosofia tradicional, afirmado que seu fracasso consiste precisamente na
canalização que esta faz da investigação do Ser para uma antropologia. Em vez
de reconhecer o lugar do homem no mundo, a posição do homem como ser entre
todos os seres, a filosofia tradicional converteu o mundo como algo que existe
por e para nós. Um homem analisado e não um homem analítico. Um ser significado
pelo seu contexto e não um ser significador. Um homem instrumento ou objeto e
não um Ser. Um Ser que é lido como ente por uma ciência que converte em objeto
de estudo aquele único que é capaz de estudar as ciências e os seres: o homem. O
que você acha, ele deve ser compreendido pessoalmente ou segundo os outros
homens?
“O processo do
despontar da ‘antropologia’ não é visado aqui como a aparição de um determinado
direcionamento e de uma determinada corrente na “historiologia” da “filosofia”
e da “metafísica”, mas é conhecido como uma consequência em termos da história
do ser do abandono do ser pelo ente”. (HEIDEGGER. Meditação. 2010, p.187)
Para o filósofo
alemão, o Dasein não pode ser analisado simplesmente como um ente. Sua meta é
ousada e desafiadora. Ele propõe o esquecimento do Ser enquanto concebido pela
tradição filosófica ocidental e refaz as concepções dos primeiros filósofos na
tentativa da descoberta do Ser. Para ele, os primeiros gregos produziam um
conhecimento distinto do homem e do Ser. Platão confere ao ser um lugar no
mundo das ideias e assim todos os demais filósofos vão se distanciando, segundo
Heidegger, o sentido do ser.
Portanto, o tema
do ser, no qual tem início a filosofia ocidental, tem de ser relido a partir
desta perspectiva de uma ontologia fundamental, que busca a possibilidade de questionar
o Ser, o Dasein, isentando-o de toda e qualquer particularidade, mas promovendo
uma investigação dos entes como um todo.
“A investigação
ontológica mesma, retamente compreendida, dá à pergunta pelo ser sua primazia
ontológica, mas além da mera retomada de uma tradição venerável e do
aprofundamento em um problema até agora escuro. Mas esta primazia na ordem
objetivo-científica não é única”. (HEIDEGGER, Ser y Tiempo, p.187)
Sendo assim,
vale frisar, que Heidegger levanta e mantém clara a distinção dos conceitos de ‘Ente’
e ‘Ser do Ente’, considerando este segundo como objeto da ontologia, enquanto o
primeiro está sujeito às ciências ônticas. Para ele ontologia é o estudo que
considera o ser que focaliza o ser do ente. Já ciência ôntica é consideração,
teórica ou prática, do ente enquanto tal, na sua particularidade, sem levar em
conta seu ser. Embora distintas, ambas são ângulos diversos de interpretação do
Dasein: a ontologia deseja alcançar o
significado do Ser, enquanto as ciências ônticas visam a descrição exterior das
características do Dasein que o
diferenciam de outras entidades. Contudo, há posteriormente um entrelaçamento
de ambas.
Para Heidegger,
não se pode limitar o pensamento sobre a essência humana a uma definição
enfática do homem, mas reconhecer que o que o distingue é a sua relação com o Ser.
Logo, o Dasein goza de privilégio em relação aos outros seres, pois lhe é
possível questionar o Ser e compreendê-lo. Só o homem está apto para pensar o
próprio ser e nos demais entes. Só ao Dasein é possível esta análise, pois só
ele pode empreender este entendimento do ser:
“O Dasein não é
tão somente um ente que se apresenta entre outros entes. O que o caracteriza
onticamente é que este possui em seu ser este mesmo ser. A constituição do ser
do Dasein implica então que o Dasein tem em seu ser uma relação de ser com seu
ser. E isto significa, por sua vez, que o Dasein se compreende em seu ser de
alguma maneira e com algum grau de explicitação. É próprio deste ente o que com
e por seu ser este se encontre aberto para si mesmo. A compreensão do ser é,
ela mesma, uma determinação do ser do Dasein.” (Ibidem)
O homem é o
único Ser-aí, o Dasein. Ele existe
imediatamente em um mundo, isto é, na realidade, na vivência cotidiana, em
relação com os outros entes. O Ser-aí é o homem na sua realidade limitada e
próxima, entregue ao seu destino:
“Este modo de
ser é próprio do homem. A existência assim entendida não é apenas o fundamento
da possibilidade da razão, “ratio”,
mas a existência é aquilo em que a essência do homem conserva a origem de sua
determinação. A existência somente se pode dizer da essência do homem, isto é,
somente a partir do modo humano de “ser”; pois, apenas o homem, ao menos tanto
quanto sabemos, nos limites da nossa experiência, está iniciado no destino da
existência. (HEIDEGGER, Carta sobre humanismo. 1991, p.10)
Ser-Aí se torna existir. O homem se define a si
mesmo enquanto experiência o conhecimento dos seres. Existir é interpretar o
mundo e a si mesmo. A compreensão de Ser é a saída primordial da caixa preta em
que o homem, desde sempre, é aprisionado pelos outros homens. O problema
filosófico fundamental é a questão do Ser. O que são todas as coisas? Mesmo os
primeiros filósofos se enganaram quando colocaram nas coisas a determinação do
Ser. Engano porque eles é que diziam das coisas o que diziam que as coisas
diziam. O Ser, ou melhor, Ser é a busca incessante do conhecimento. Esta é a
aventura da existência, nosso próximo artigo.
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