Lc 9, 28b – 36
2º Domingo da Quaresma Ano C
Depois do deserto a montanha, depois
das tentações a escalada, depois do sol escaldante a falta de ar e o vento
gélido, depois da provação a oração. Ledo engano para quem acha que se reza
primeiro e depois enfrenta a tribulação, pois esta se enfrenta ‘em’ oração.
Jesus nos ensina que a oração não é uma etapa na vida espiritual, mas a própria
vida espiritual, o seu cotidiano.
28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago,
e subiu à montanha para rezar.
A prática da vida de oração, ou
melhor, deveria dizer a vida de oração, uma vez que dizer-se ‘de oração’, sem a
prática de orar ou rezar, perderia o sentido. Isto é a vida de qualquer pessoa
espiritual: conversar com Deus. Pois se algumas vezes nos pegamos conversando
sozinhos, com nossos botões, como poderíamos viver sem elevar ainda mais alto o
nosso pensamento e até mesmo silenciar para ouvi-los? Subir ‘acompanhado’ já
indica que subir sozinho era uma tarefa que o próprio Jesus não preferia. A
montanha, por sua vez, é um sinal antigo de encontro com aquele que é superior
a tudo, o totalmente outro. Como disse Dante Alighiere, no canto do Purgatório,
o qual compara com uma montanha, na sua escalada, o cansaço é o que menos se
sente quanto mais se sobe; assim poderíamos definir também a vida espiritual.
29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de
aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
É sempre curiosa a sensação de
felicidade e segurança que transparece no rosto de quem faz uma experiência de
satisfação. Tal pessoa não se nega nas aparências de que está bem, pois o seu
coração e consciência, de fato, estão bem. Deixo ao leitor, em sua mais íntima
meditação, a possibilidade de nos dizer o que seria esta roupagem alva e
resplandecente da qual Jesus se revestiu e muitos de nós não conseguem esconder,
quando transbordam de felicidade.
30 Eis que dois homens estavam conversando
com Jesus: eram Moisés e Elias.
São os homens das montanhas. Aqueles
que as frequentavam com assiduidade. Não é de se admirar que haja pessoas de
oração onde se costumam rezar. A admiração seria o contrário, se não houvesse
pessoas de oração nos lugares onde se vai rezar. Todavia, não se admire se eu
disser que aquele monte, Tabor segundo a tradição, já era frequentado por não
cristãos. Mesmo em Israel, não há tantas montanhas, nem tão altas, como se vê
igrejas em cada esquina de nossas cidades. Lugares assim não eram exclusivos.
Contava o guia turístico do local que, segundo uma antiga tradição, uma deusa pagã
era cultuada lá em cima, além do que, outros judeus também se reuniam para
cultos não ortodoxos. Assim, podemos entender que Jesus se mistura aos que
buscam Deus além de uma religião que se perdeu na razão de suas leis.
31 Eles apareceram revestidos de glória e
conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
A conversa é essa: sofrimento e
morte. Mas quando diz ‘sobre a morte’ dá a entender também sobre que tipo de
morte, e aí podemos pensar em todas as situações que envolveram a morte de
Jesus, sobretudo aquelas ligadas à história de cada um desses que vieram para
partilhar esse assunto. Uma conversa que nenhum de nós, vivos, gosta de ter;
logo alguém diria: “Vire essa boca para lá!” Também acho de extrema dureza que
se tenha de falar de assuntos que nos matam e do quanto nos querem mortos, como
aquele sacerdote vai dizer: “Convém que morra um só homem pelo povo, e que não
pereça toda a nação.” (Jo 11, 50) Não é por menos que Jesus não quisesse
continuar em uma religião que sacrifica uma pessoa para se proteger perante a
sociedade e agradar aos seus membros, sem se preocupar com a verdade de fato,
ainda que defendendo suas leis.
32 Pedro e os companheiros estavam com muito
sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com
ele.
O sono de Pedro e dos companheiros é
recorrente. Às vezes me pergunto, por que os evangelistas insistiam em dizer
que os apóstolos e discípulos tiravam os seus cochilos em horas cruciais, se
não seria um índice e um alerta para a igreja nascente, dos primeiros cristãos,
de que o peso do sono fecharia os olhos daqueles “ocupados em nada fazer” (2 Ts
3, 11), mesmo sendo as pessoas mais destacadas da comunidade, que só acordariam
depois, no final da cena, quando já não pudessem fazer mais nada; além de
perderem o fio da ninhada. Quantos detalhes não se perderam daquela conversa!
Talvez eles não devessem mesmo saber tudo o que se passou no Tabor, nem no
Getsemani (Lc 22, 45s).
33 E quando estes homens se iam afastando,
Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma
para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.
Quem de nós diria ao príncipe da Igreja
que ele não sabia o que estava dizendo? Só mais tarde a história poderia
confirmar ou nos dar autoridade, como deu esta certeza ao evangelista Lucas.
Também não é por menos que alguns Papas tiveram a hombridade de reconhecer o
engano dos seus predecessores, portanto, que não sabiam o que estavam dizendo,
quando disseram algumas coisas sobre ciência e até religião. Sei que é uma
situação extremamente delicada essa de se desculpar depois. Passam anos e, em
certos casos, nem se pede perdão a quem foi ‘enganado’. O tempo passa e com ele
as suas ideias também. O que nos garante que no futuro pedirão perdão pelos
enganos de hoje. Quem de nós diria aos homens de Igreja em que eles já não
sabem o que estão dizendo?
34 Ele ainda estava falando, quando apareceu
uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao
entrarem dentro da nuvem.
Veja se esta narração não lembra a
Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria, mas, sobretudo, a nuvem que preenche a
Tenda da Reunião, que Moisés não podia entrar. (Ex 40, 34s) Naturalmente o
leitor já identificou essa sombra com a presença do Espírito Santo. Atine também
para este clima maravilhoso que traz a vida no espírito e que exige uma
iniciativa redundante e corajosa do fiel de ‘entrar dentro’, entrar mesmo, não
beirar ou assistir de fora, como fazem muitos que se dizem cristãos e Moisés
que ficou de fora. Existe outra atitude que definirá o orante nesta cena, o
medo, melhor, a coragem de permanecer dentro, mesmo na penumbra. Quantas vezes
encerramos nosso ‘êxtase’ espiritual por causa do tempo ou covardia do
confronto, quando o assunto começou a revelar as consciências. Sim, entrar
nesta nuvem faz medo.
35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia:
“Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”
O medo é algo natural a todos nós. Deus
também nos dá incertezas. Nem tudo está claro e definido na nuvem do Tabor. Até
o brilhantismo dos profetas e a segurança da lei, segurança de muitos, perdem
sua nitidez para dar lugar ao que a voz dizia: Escutar Jesus! Não há aqui outro
ensinamento ou conselho que nos guie na vida, pois há escuridão mesmo entre os
espirituais, e não se deve deixar o medo guiar a vida de quem reza. Escutar Jesus
é o ensinamento mais básico do cristianismo e ao mesmo tempo a guinada, o up (inglês = para cima) da fé, o
diferencial, aquilo que se deixa de fazer no fracasso da espiritualidade.
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus
encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não
contaram a ninguém nada do que tinham visto.
Agora entendemos por que Pedro não
sabia o que estava dizendo. Não era para ficar em tendas na montanha. Ali não era
o objetivo da missão e do ensinamento de Jesus. Embora fosse bom ficar na
glória dos profetas e no mérito da Lei, Jesus reservava outra revelação que
carecia de um ingresso muito íntimo no profundo deles mesmos, ainda que com
medo, a fim de serem, também eles ungidos pela sombra do Espírito, tocados pelo
seu mistério e encontrassem a certeza que os faria atravessar o vale tenebroso da
sombra da morte (Sl 22, 4).
Este segundo domingo da quaresma,
segundo o evangelho de S. Lucas, traz um convite ainda mais corajoso que a luta
travada contra as tentações, a saber, ir além das aparências da religião de
satisfação. Jesus está a caminho de Jerusalém e sabe que enfrentará as
autoridades constituídas de seu povo. Sabe, porém, o que eles não sabem: Sabe a
quem serve e para que veio. Já aquelas autoridades não sabem mais a quem servem
e há muito trocaram a sua fé pela cumplicidade política entre religião e império
romano. Não entendo como aquela fé não pode apresentar ao mundo um ensinamento
novo e foi se tomando do medo de ser diferente, de sair das nuvens e descer do
alto das montanhas.
A postura mais cômoda para qualquer
estadista é mesmo atrelar o seu vagão em outro e não arcar com o peso de puxar
o trem ou remar contra a maré. Não precisamos de rebeldes sem causa ou profetas
sem convicção; precisamos de Jesus e de pessoas que hajam como se fossem Ele. Creio
que isto basta para definir a espiritualidade de alguém, se diz e faz o que Jesus
diria e faria se estivesse em seu lugar. Já imaginou se olhássemos para as
pessoas nos perguntando se Jesus faria assim? Já se imaginou se perguntando se Jesus
teria feito o que você fez e disse?
Desejo a você uma Quaresma de jejum,
esmola e oração. Faça de Jesus o seu espelho e veja se é Ele quem você vê
quando se olha nele. Boa semana e reze por mim!
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
21.02.2016
Pe.
Adeilton Santana Nogueira
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