sábado, 27 de fevereiro de 2016

UMA GUINADA, UP, NA FÉ

Lc 9, 28b – 36
2º Domingo da Quaresma Ano C

Depois do deserto a montanha, depois das tentações a escalada, depois do sol escaldante a falta de ar e o vento gélido, depois da provação a oração. Ledo engano para quem acha que se reza primeiro e depois enfrenta a tribulação, pois esta se enfrenta ‘em’ oração. Jesus nos ensina que a oração não é uma etapa na vida espiritual, mas a própria vida espiritual, o seu cotidiano.

28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar.

A prática da vida de oração, ou melhor, deveria dizer a vida de oração, uma vez que dizer-se ‘de oração’, sem a prática de orar ou rezar, perderia o sentido. Isto é a vida de qualquer pessoa espiritual: conversar com Deus. Pois se algumas vezes nos pegamos conversando sozinhos, com nossos botões, como poderíamos viver sem elevar ainda mais alto o nosso pensamento e até mesmo silenciar para ouvi-los? Subir ‘acompanhado’ já indica que subir sozinho era uma tarefa que o próprio Jesus não preferia. A montanha, por sua vez, é um sinal antigo de encontro com aquele que é superior a tudo, o totalmente outro. Como disse Dante Alighiere, no canto do Purgatório, o qual compara com uma montanha, na sua escalada, o cansaço é o que menos se sente quanto mais se sobe; assim poderíamos definir também a vida espiritual.

29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.

É sempre curiosa a sensação de felicidade e segurança que transparece no rosto de quem faz uma experiência de satisfação. Tal pessoa não se nega nas aparências de que está bem, pois o seu coração e consciência, de fato, estão bem. Deixo ao leitor, em sua mais íntima meditação, a possibilidade de nos dizer o que seria esta roupagem alva e resplandecente da qual Jesus se revestiu e muitos de nós não conseguem esconder, quando transbordam de felicidade.

30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias.

São os homens das montanhas. Aqueles que as frequentavam com assiduidade. Não é de se admirar que haja pessoas de oração onde se costumam rezar. A admiração seria o contrário, se não houvesse pessoas de oração nos lugares onde se vai rezar. Todavia, não se admire se eu disser que aquele monte, Tabor segundo a tradição, já era frequentado por não cristãos. Mesmo em Israel, não há tantas montanhas, nem tão altas, como se vê igrejas em cada esquina de nossas cidades. Lugares assim não eram exclusivos. Contava o guia turístico do local que, segundo uma antiga tradição, uma deusa pagã era cultuada lá em cima, além do que, outros judeus também se reuniam para cultos não ortodoxos. Assim, podemos entender que Jesus se mistura aos que buscam Deus além de uma religião que se perdeu na razão de suas leis.

31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém.

A conversa é essa: sofrimento e morte. Mas quando diz ‘sobre a morte’ dá a entender também sobre que tipo de morte, e aí podemos pensar em todas as situações que envolveram a morte de Jesus, sobretudo aquelas ligadas à história de cada um desses que vieram para partilhar esse assunto. Uma conversa que nenhum de nós, vivos, gosta de ter; logo alguém diria: “Vire essa boca para lá!” Também acho de extrema dureza que se tenha de falar de assuntos que nos matam e do quanto nos querem mortos, como aquele sacerdote vai dizer: “Convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação.” (Jo 11, 50) Não é por menos que Jesus não quisesse continuar em uma religião que sacrifica uma pessoa para se proteger perante a sociedade e agradar aos seus membros, sem se preocupar com a verdade de fato, ainda que defendendo suas leis.

32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.

O sono de Pedro e dos companheiros é recorrente. Às vezes me pergunto, por que os evangelistas insistiam em dizer que os apóstolos e discípulos tiravam os seus cochilos em horas cruciais, se não seria um índice e um alerta para a igreja nascente, dos primeiros cristãos, de que o peso do sono fecharia os olhos daqueles “ocupados em nada fazer” (2 Ts 3, 11), mesmo sendo as pessoas mais destacadas da comunidade, que só acordariam depois, no final da cena, quando já não pudessem fazer mais nada; além de perderem o fio da ninhada. Quantos detalhes não se perderam daquela conversa! Talvez eles não devessem mesmo saber tudo o que se passou no Tabor, nem no Getsemani (Lc 22, 45s).

33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.

Quem de nós diria ao príncipe da Igreja que ele não sabia o que estava dizendo? Só mais tarde a história poderia confirmar ou nos dar autoridade, como deu esta certeza ao evangelista Lucas. Também não é por menos que alguns Papas tiveram a hombridade de reconhecer o engano dos seus predecessores, portanto, que não sabiam o que estavam dizendo, quando disseram algumas coisas sobre ciência e até religião. Sei que é uma situação extremamente delicada essa de se desculpar depois. Passam anos e, em certos casos, nem se pede perdão a quem foi ‘enganado’. O tempo passa e com ele as suas ideias também. O que nos garante que no futuro pedirão perdão pelos enganos de hoje. Quem de nós diria aos homens de Igreja em que eles já não sabem o que estão dizendo?

34 Ele ainda estava falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem.

Veja se esta narração não lembra a Anunciação do Arcanjo Gabriel a Maria, mas, sobretudo, a nuvem que preenche a Tenda da Reunião, que Moisés não podia entrar. (Ex 40, 34s) Naturalmente o leitor já identificou essa sombra com a presença do Espírito Santo. Atine também para este clima maravilhoso que traz a vida no espírito e que exige uma iniciativa redundante e corajosa do fiel de ‘entrar dentro’, entrar mesmo, não beirar ou assistir de fora, como fazem muitos que se dizem cristãos e Moisés que ficou de fora. Existe outra atitude que definirá o orante nesta cena, o medo, melhor, a coragem de permanecer dentro, mesmo na penumbra. Quantas vezes encerramos nosso ‘êxtase’ espiritual por causa do tempo ou covardia do confronto, quando o assunto começou a revelar as consciências. Sim, entrar nesta nuvem faz medo.

35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”

O medo é algo natural a todos nós. Deus também nos dá incertezas. Nem tudo está claro e definido na nuvem do Tabor. Até o brilhantismo dos profetas e a segurança da lei, segurança de muitos, perdem sua nitidez para dar lugar ao que a voz dizia: Escutar Jesus! Não há aqui outro ensinamento ou conselho que nos guie na vida, pois há escuridão mesmo entre os espirituais, e não se deve deixar o medo guiar a vida de quem reza. Escutar Jesus é o ensinamento mais básico do cristianismo e ao mesmo tempo a guinada, o up (inglês = para cima) da fé, o diferencial, aquilo que se deixa de fazer no fracasso da espiritualidade.

36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.

Agora entendemos por que Pedro não sabia o que estava dizendo. Não era para ficar em tendas na montanha. Ali não era o objetivo da missão e do ensinamento de Jesus. Embora fosse bom ficar na glória dos profetas e no mérito da Lei, Jesus reservava outra revelação que carecia de um ingresso muito íntimo no profundo deles mesmos, ainda que com medo, a fim de serem, também eles ungidos pela sombra do Espírito, tocados pelo seu mistério e encontrassem a certeza que os faria atravessar o vale tenebroso da sombra da morte (Sl 22, 4).

Este segundo domingo da quaresma, segundo o evangelho de S. Lucas, traz um convite ainda mais corajoso que a luta travada contra as tentações, a saber, ir além das aparências da religião de satisfação. Jesus está a caminho de Jerusalém e sabe que enfrentará as autoridades constituídas de seu povo. Sabe, porém, o que eles não sabem: Sabe a quem serve e para que veio. Já aquelas autoridades não sabem mais a quem servem e há muito trocaram a sua fé pela cumplicidade política entre religião e império romano. Não entendo como aquela fé não pode apresentar ao mundo um ensinamento novo e foi se tomando do medo de ser diferente, de sair das nuvens e descer do alto das montanhas.

A postura mais cômoda para qualquer estadista é mesmo atrelar o seu vagão em outro e não arcar com o peso de puxar o trem ou remar contra a maré. Não precisamos de rebeldes sem causa ou profetas sem convicção; precisamos de Jesus e de pessoas que hajam como se fossem Ele. Creio que isto basta para definir a espiritualidade de alguém, se diz e faz o que Jesus diria e faria se estivesse em seu lugar. Já imaginou se olhássemos para as pessoas nos perguntando se Jesus faria assim? Já se imaginou se perguntando se Jesus teria feito o que você fez e disse?

Desejo a você uma Quaresma de jejum, esmola e oração. Faça de Jesus o seu espelho e veja se é Ele quem você vê quando se olha nele. Boa semana e reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
21.02.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira

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