quinta-feira, 24 de março de 2016

AMOU-OS ATÉ O FIM

Quinta-feira Santa – Ano C

Quando o meu pai faleceu, aos 12 de junho de 2007, porém no dia seguinte, após o sepultamento, estávamos em casa naquele clima que não precisa nominar. Vendo a tristeza encarnada em minha mãe procurava alguma forma de lhe devolver a alegria que a despedida de meu pai lhe causou. Eis que me lembro da gaveta que meu pai nos proibia de abrir e xeretar. Propus a ela finalmente descobrirmos o que ele tanto escondia. Ela me olha com aquele semblante de quem se lembrou de algo, no caso de alguém, e concorda. Então lhe trouxe a gaveta e, finalmente, descobrimos o que continha.

Na gaveta de meu pai encontramos alguns pertences seus e de outros parentes dele e dela. Meu pai guardava ainda suas credenciais de militar e canetas velhas; sua caligrafia justifica seu gosto por elas. Mas, o surpreendente, além de algumas fotografias antigas de todos nós, foi uma oração, escrita a próprio punho, que, mais tarde, usamos um fragmento para compor o santinho de sétimo dia. O que realmente quero destacar dessa memória é a frase final da oração: “tendo amado os seus... amou-os até o fim.” (Jo 13, 1b) A conclusão da oração de meu pai era a introdução da Oração Sacerdotal de Jesus, escrita pelo evangelista S. João, lida na missa de hoje, de Lava-pés ou da Ceia do Senhor, como queiram.

Passei esse dia lembrando desses homens, mártires de amor, que significaram a minha vida, meu pai e Jesus, nosso Senhor. Acho que não fiz mal em lembrar deles juntos, já que são as minhas maiores referências nessa vida. Hoje, nós sacerdotes, renovamos os nossos votos perante o bispo, pai espiritual da comunidade de fé. Acho também que não peco se a imagem de meu genitor e os compromissos que me exemplou com a sua vida são ainda tão fortes em minha consciência e coração que não consigo substituí-lo por outra figura paterna. Ainda mais, afastado já há mais de dois anos, meus votos, meu ministério e o sacerdócio estão mais nas mãos de Deus do que quando pareciam estar nas minhas.

A cada dia, distante do exercício do ministério sacerdotal, todavia incardinado à diocese, percebo que o sacerdócio de Cristo, no qual participam os ordenados, e o próprio exercício desse ministério, é maior do que foi ensinado nos seminários ou se conhece durante os anos na ativa. O alcance de nossas palavras e ações, em absoluto, não retornam para onde saíram. Isto muitíssimo me alegra! A eficiência do ministério sacerdotal, o exercício do sacerdócio, enquanto sacramento vivo que é o sacerdote, não é apenas ex opere operato (pelo fato de ter sido validamente celebrado, sem mérito de quem recebe ou oficia o sacramento) ou ex opere operantis (a depender da santidade do ministro), arriscaria em dizer que, independente da ‘polêmica’ credulidade do ministro e mesmo fora dos rituais, há uma eficiência que é sumamente “ex opere” (além da ação). As boas ações de um sacerdote sempre exalarão o agradável odor de Cristo (2 Cor 2, 15), ainda que ele não seja um ‘bom’ ministro ou não celebre os sacramentos. Penso que a graça e validade dos sacramente continue após eles, estenda-se através e além deles.

Se é Cristo quem age no sacerdote, não se pode achar que seja apenas em momentos isolados, uma vez que ele não foi ‘meia boca’ ordenado, logo suas boas ações sempre carregarão a marca indelével de sua ordenação – Jesus Cristo, que o assemelha à sua natureza sacerdotal, intrínseca pela força do sacramento que recebeu. Suas boas ações não lhe pertencem. Uma vez realizadas, as consequência, sempre benéficas, pertencem à ação última dAquele que “passou no mundo fazendo o bem” (At 10, 38) – Jesus Cristo, e cremos operar por um ministro ordenado, em especial, por um sacerdote, legítima e validamente ordenado.

A graça sacerdotal é Cristo. E Ele é Deus. O que um Sacerdote faz de bom terá sempre a força de Deus. A sua palavra e ação, em razão de sua ordenação, tem a força e o alcance que a Igreja espera. Ainda que ele deixe o ministério ou a Igreja lhe tire, ainda que os fieis não o aceitem, por suas aparências humanas ou seus inimigos consigam manchar sua reputação, graças a Deus, nada do que ele operou, na força da Ordem, será prejudicado em seu fim último. Ainda que ele seja crucificado, difamado, chagado, o seu suor e sangue continuarão redimindo, pois os seus feitos continuarão produzindo frutos nos corações onde semeou a Palavra da verdade. Este é o meu consolo de hoje. As ações de Deus perduram para sempre. Meu consolo é que Deus agiu e, ainda mais, continua agindo por mim, pelas obras do passado e pelas ações do presente. Age também em mim, pois jamais tirou a sua bênção da minha vida, ainda que alguns, mesmo de igreja, desviem o olhar e não me abençoem mais.

O sacerdócio não é um ofício qualquer, como esses da crise econômica, que se demite pela inutilidade, pelo contingente ou pela contingência dos operários. Quando vejo o meu colegiado, clama em meu coração o grande dom que Deus nos deu. Todos os ritos celebrativos exaltam o sacerdote. É uma dignidade deveras alta. Jamais me considerei digno de tal chamado. Inclusive, ingressei para ser menos indigno atendendo-Lhe ao chamado. Minha mãe achava que a Igreja era o lugar mais seguro e estável para a carreira de um filho. Encontrava-se segura comigo no clero, como se eu estivesse protegido de quaisquer maldades desse mundo. Meu Deus, existe esse lugar, em que o mal não se encontre?

Todos os ritos de hoje apontam para o exercício do ministério. São celebrações funcionais. Elas querem dizer algo muito claro e eficiente. Existe uma finalidade para cada ato, para cada gesto e símbolo. Tudo é para, em razão ou função disso ou daquilo; tudo aponta, indica. Estamos celebrando, mas ainda não é isto. O que de fato é aquilo que estamos celebrando ainda precisa ser buscado outra vez, em outro lugar, em outro tempo. Há sempre a necessidade renovada de se repetir isto que cremos seja eterno e verdadeiro, mas que não se concretiza definitivamente agora, hoje, desta vez. Parece que algo da mecanização moderna na religião, algo de industrial, produtivo, acumulativo e rentável.

Será que isto tem a ver com o fato de que os atos de Jesus continuam sua eficiência após terem ocorrido, mesmo que por sacerdotes? Por que os mesmos atos precisam ser feitos de novo, mesmo em pessoas que já os receberam, se são eficientes definitivamente, em razão de quem os operou: Cristo? A eficiência da Graça não pode estar no paciente, em quem a recebe, senão no agente, em quem as ‘ex’ opera (age para fora). Não fosse assim, precisaríamos de quem as operasse? O que sei é que entre ministério sacerdotal e eficiência da graça há um fio condutor nem sempre contemplado como precisão. A eficiência das ações ministeriais está garantida nAquele que opera de fato através delas: Deus. Esse mecanismo industrial, como um sistema produtivo, sutilmente impregnado na religião parece não estar ajudando na práxis pastoral. Os ministros não são operários que se descartam como peças fora da nova  engrenagem onde sua utilidade não serve mais.

Vejo nos tantos símbolos e mediações visuais e gestuais os apetrechos da gaveta de meu pai. Tantas lembranças que ele guardava e que tanto nos emocionaram em descobrir. Mas, o mais importante naquela vasculhada foi descobrir a sua oração que nos soou como uma carta póstuma, nos moldes de um testamento e de suas últimas palavras que não teve a chance de dizê-las. A lembrança daquela cena me fez entender o sacerdócio assim, como as últimas palavras de Jesus e de meu pai: o sacerdócio é “amar os seus até fim”. Muitas palavras ficam para sempre na memória de alguém, mas as últimas nos preocupamos em mantê-las ecoando. Assim o sacerdócio é maior do que o sacerdote e a sua eficácia é maior do que o seu exercício. Assim se garante que jamais alguém nesse mundo possa, de fato e em verdade, anular a instituição do sacerdócio de Jesus e do amor como sacramento.

‘Hoje’ Jesus é um sacerdote condenado, um algoz, um vilão, um atroz. Embora sempre estivesse com os Seus nas praças e sinagogas, no Templo e nas casas. ‘Hoje’ é o bode expiatório dos irmãos que não têm coragem de olhar para si mesmos e enxergar o quanto manipularam a religião que Ele mesmo fazia parte. Pintaram um rosto de Jesus que não era a Sua verdadeira face. Corremos este risco quando não somos fieis à Sua verdadeira personalidade.  Por isso, sempre achei que retirar o Santíssimo do altar e colocar no corredor lateral da igreja não resolveria muita coisa. Sempre achei belíssimas as cerimônias bem ensaiadas de modo que os fieis não percebessem erros, como se o padre não soubesse o que estava fazendo. Sempre achei que valeria repetir o ato no próximo ano, uma vez que alguns estariam participando pela primeira vez, sobretudo os mais novos. Mas sempre percebi que até os mais velhos ainda não sabiam a sequência dos atos, nem o seu sentido.

Ainda hoje me deparo com a constante perda de sentido desses dias sagrados e a crescente admiração e promoção do espetaculoso das procissões e imagens sacras restauradas para a exposição pública. Há muita piedade sim, acredito! Mas a oscilação da frequência de fieis nas celebrações comuns me preocupa também. O que há com a fé dos piedosos, que se alimentam de procissões, que não os saciam nas doses cotidianas das celebrações comuns? Que sabor é esse das procissões que os bancos das igrejas não adquiriam? Há mais pessoas nas filas penitenciais da Semana Santa e do cortejo do padroeiro do que na missa semanal.

A eficácia e perenidade da ação de Cristo, que continua agindo no crente, não deveria lhe furtar a vida saudável e graciosa de, também ele, ser perene na sua pertença e permanência com o seu Deus. Por isso que os símbolos e metáforas sempre serão insuficientes para falar do próprio Verbo encarnado. Dizer que Jesus cura pode aludir ao remédio que se administra apenas no período da enfermidade. E, talvez, justifique o fiel que somente O busca nas fragilidades de sua vida. Penso eu, que quando apresentarmos Jesus como a pessoa que de fato é, sem tantas comparações e elucubrações eloquentes, sem historinhas e metáforas, sem falácias ou lógicas metódicas, sem máscaras e comparações, sem precisar de outro texto para facilitar a leitura e atualização da Escritura, sem moldá-Lo às próprias conveniências, sem preferir ou omitir esta ou aquela citação ou quando a sua vida for a principal mediação de Sua Pessoa e vive versa, aí estaremos falando de Alguém real e humano, mais próximo e palpável, exemplar e repetível, alguém que toca as nossas memórias e nos compromete em seguir, sem obrigações ou preocupações aparentes, sem coação, mas por amor a Ele. Não é possível que, conhecendo o próprio Amor, não O amemos. Alguém não O apresentou ainda!

Desejo uma vida de amor, com Jesus, e tão intensamente que o seu amor, leitor(a), alcance os seus. Reze por mim!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
24.03.2016
Pe. Adeilton Santana Nogueira



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