Mc 7, 31 - 37
O evangelho de hoje continua o
capítulo sete de São Marcos, porém salta a passagem da mulher sírio-fenícia.
Não é de hoje que aquele povo sofre rejeições. Recentemente, os sírios vêm
chamando a atenção política e humanitária do mundo. Ninguém pode ficar de fora
dessa causa. Sem deixar uma coisa e outra, como sempre, pretendo algumas
meditações e espero que sirvam de alguma maneira ao prezado leitor.
A morte do menino Aylan Kurdi, de
três anos, criança síria encontrada morta na praia da Turquia, aos três deste,
facilmente seria assunto da pregação deste domingo, se o evangelho fosse o de
Marcos 7, 24 - 30, da mãe nascida na Fenícia da Síria, tendo a sua filha
possuída pelo demônio. Pagã, e tratada como cachorro (Cf Mc 7, 27), ela é
atendida por um extremo ato de fé e de coragem, em lutar pelas migalhas que as
crianças deixam cair de suas mesas (Cf. Mc 7, 28).
31
Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar
da Galiléia, atravessando a região da Decápole.
Quem quiser que ache que estas
perícopes não estão ligadas. Elas ocorrem na mesma região, entre Tiro e Sidônia.
A região da Decápole compreendia o conjunto de dez cidades do alto comércio,
entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, portanto, de grande fluxo de
estrangeiros, diversidade social e religiosa, ou seja, Jesus está no olho do
formigueiro. Em seu vai e vem se percebe a Sua capacidade de inserir-Se, mas
antes, de atrair pessoas a Si, impar, ainda hoje.
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Levaram então a Jesus um homem surdo e que falava com dificuldades, e pediram
que Jesus pusesse a mão sobre ele.
Aquela mãe foi ao encontro de
Jesus (Cf. Mc 7, 25), este surdo, por sua vez, foi conduzido até Ele. Isso é o
caminho da catequese: ora alguém O procura ora alguém O apresenta. Talvez ele
não fosse pagão e por isto o trouxeram. Ela, estrangeira e pecadora, que se
vire! Lembremos ainda da hemorrágica que se espreita por debaixo da multidão,
espoliada e envergonhada pelo tipo de impureza (Mc 5, 31), e da prostituta,
trazida a Jesus, para um julgamento que encerra com uma das mais humanitárias
sentenças já proferidas: “aquele que não tiver pecados que atire a primeira
pedra” (Jo 8, 7), dada pelo juiz de todos nós.
Desde que iniciei na missão de pregar
o evangelho, nas comunidades do interior de minha terra natal, Tobias Barreto –
SE, e isto já completa vinte e cinco anos, que anúncio esta surdez como algo
também espiritual. Mas foi na Teologia onde aprendi, de fato, tratar-se de não
ouvir o que o Mestre tem a dizer. Todavia, uma freira me despertou para outra
dimensão das curas de Jesus, que explicarei a seguir, no próximo verso.
Antes, porém, vale trazer em
mente o simbolismo da imposição das mãos. Tanto espiritual quanto socialmente falando,
quando alguém põe a sua mão sobre o outro está se aproximando e indicando que
um e outro têm ligação. Há uma comunhão e intimidade que troca favores. Jesus
extrai dores e doa bênçãos. Nós Lhe entregamos nossa fraqueza e, em troca,
recebemos fortaleza.
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Jesus se afastou com o homem para longe da multidão; em seguida pôs os dedos no
ouvido do homem, cuspiu e com a sua saliva tocou a língua dele.
Note que, apesar de o terem
trazido, Jesus o afasta deles. O mestre sabe, que em relação ao seu povo, o
surdo era rejeitado. Esses companheiros não eram seus
intérpretes. Uma das atitudes que denuncia
alguém que serve, que ele não quer mais continuar servindo, é, justamente, quando
dizem querer libertar o deficiente de sua fragilidade; quando, na verdade,
escondem algum cansaço em continuar essa tarefa de dependência mútua. Salvo,
claro, aqueles que têm uma vida tão dedicada. A lição da freira me pareceu uma
verdade firme, que jamais esqueci, e pretendo repassá-la.
Aquela aula mais parecia uma psicologia
pastoral. Ainda é viva em minha memória. O texto em estudo era este mesmo de
São Marcos. A Irmã falou da necessidade de Jesus separar o surdo da comunidade
para curá-lo. Disse ela que a permanência na comunidade não o curaria, pois a
rejeição ensurdecia e calava a todos cada vez mais. Os seus compatriotas não o
ajudavam a entender o que se passava à sua volta, não lhe interpretavam os
sinais, nem deixavam que se expressasse ou opinasse. O surdo era apenas um
rotulado de “mudo”, como tantos outros ainda hoje, que “não sabem o que dizem”,
quando nós é que não entendemos as suas palavras.
Não creio que exageramos em
afirmar a necessidade de, às vezes, sair do grupo que participamos para
enxergar melhor o que ocorre ali dentro, quais tipos de cegueiras, surdez e
mudez nos sentenciam; quais tapumes ideológicos, sociais e políticos, a
cachorrada, melhor dizendo, que nos intimidava e, oprimidos, preferíamos ‘não
ver’, ‘nada ouvir’, ‘menos falar’. Se a cura é social, esta também seria uma
possível interpretação desse evangelho.
34
Depois olhou para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abra-se!”
Então esta seria a maior
dificuldade de todos os tempos, posturas e pessoas: ‘abrir-se’. O novo, o
vindouro e o próximo. Dos reis magos (Mt 12,
1 – 12), passando pelo semelhante do samaritano (Lc 10, 30 – 37), até Dimas, o
bom ladrão (Lc 23, 39 – 43), não fosse esse Efatá prolongado, suspirado ao céu,
clamado intimamente e proferido em alto e bom som. Sem ele, nem surdos nem
audientes, jamais nos abriríamos à grandeza, à profundidade, à amplitude dessa
ressonante ordem divina, em tom de proclamação afirmativa, positiva e impositiva.
Por que ousaria ainda algo ou alguém permanecer fechado após o Senhor mandar
abrir-se? A palavra de hoje é Abra-se, para o novo, para o outro, para a Vida.
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Imediatamente os ouvidos do homem se abriram, sua língua se soltou e ele
começou a falar sem dificuldade.
Deixemos que os silenciados
falem. Ouçamos o que têm a dizer os que não damos ouvidos. Chego até a pensar
que quem muito fala, quem muito se pronuncia tem muito, mas muito pouco a
dizer. Pensam que dizem muito porque se acham necessários. Falaria menos quem
deixa que os outros também falem. Uma comunidade onde poucos falam, onde poucos
podem falar, talvez seja uma comunidade de mudos e de surdos, logicamente. Alguns
falam demais para que outros não falem mesmo. São maus interpretes, já que
traduzem apenas os próprios interesses. Alegra saber que eloquência não é
acúmulo de palavras, e quem muito fala,
muito do que diz se perde.
A tirania, governo do medo e do
terror, também é o governo de um só, onde só vale o que ele diz. O tirano
governa para surdos-mudos. A sua ideologia mascara uma ‘preocupação’ com o
estado de direito: o seu. Agora vejamos quão diabólico é algo semelhante a isto
numa religião. Daí pode-se entender por que logo depois do exorcismo da filha
da mulher sírio-fenícia vem a cura do surdo na comunidade.
Sem participação, sem acolhida de
estranhos, sem escuta dos membros, uma organização não pode se considerar
comunidade, uma religião poderá agradar a Deus (Cf. Tg 1, 27) e a humanidade
não se reconciliará consigo mesma. Entre as máximas de “o homem nasce bom e a
sociedade o corrompe” (Rousseau) e “o homem é lobo do próprio homem” (Hobbes),
estaríamos entre duas ondas sufocantes sem distinguir qual delas nos atingirá
primeiro. Mas, graças a Deus, há outras ondas empurrando a humanidade: as que
nos empurram para a margem. Queira
Deus, antes do afogamento da humanidade própria de cada um, quem
sabe, vem uma onda mais forte que diz: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que
os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas.” (Mt
7, 12) Ou se preferir na forma negativa: “Não faças a ninguém aquilo que não
queres que te façam”, como disse Tobias (4, 15).
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Jesus recomendou com insistência que não contassem nada a ninguém. No entanto,
quanto mais ele recomendava, mais eles pregavam.
O silêncio de Jesus é mais
messiânico que profético. Isto os teólogos ainda discutem. Fato é que não
noticiar prodígios em grande multidão é praticamente impossível. Sobretudo na
região em que Ele Se encontrava, palco de interesses políticos antigos, dada a
posição geográfica favorável ao comércio. Comércio e informação caminham juntos
há muito tempo. O silêncio
messiânico diz respeito a sua ‘Hora’ que ainda não chegou. Quando o Filho do Homem
for levantado, aí sim, Ele atrairá todos a Si. (Jo 12, 32) Nesta recomendação
de Jesus não se trata de silenciar o Seu ato profético, isto seria pura
covardia. Calar por medo não é próprio de Jesus. Seu silêncio tem uma data. Mas
a eloquência de suas ações não O deixa no
anonimato.
37
Estavam muito impressionados e diziam: “Jesus faz bem todas as coisas. Faz os
surdos ouvirem e os mudos falarem”.
O Seu sucesso pastoral evoca o
sucesso da criação que Ele restaura na bondade (Cf. At 10, 38). Suas ações vão
remontando em seus curtos dias os mil anos de Deus (2Pd 3, 8). Cada gesto seu é
recriador, é histórico-dialético, recapitula a vida do seu povo, evoca o
passado, reconfigura-se no presente e transforma o futuro numa continuidade
descontínua, no “já, mas não ainda” da Teologia, em que ‘já’ experimentamos
nEle as realidades futuras, ‘mas não ainda’ definitivamente, pois o céu apenas
se vislumbra, apenas se antecipa em Seu emigrante terreno mais notável,
estrangeiro como todos nós (Cf. 1ª Pd 1, 10 – 12).
Sim, Ele fez bem todas as coisas!
(Mc 7, 37) Temo que muito desse bem não seja tão bem entendido ainda ou tão bem
anunciado, de modo que surdos ouçam, mudos possam falar e cegos enxerguem o que
tantos parecem esconder. Não fechemos as portas que Jesus deixou abertas!
Tenhamos todos uma semana de
maior abertura de mente e coração para o bem de todos e da humanidade!
Glória ao Pai e ao Filho e ao
Espírito Santo
06
de setembro de 2015
Pe.
Adeilton Santana Nogueira
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