segunda-feira, 7 de setembro de 2015

ABRA-SE

Mc 7, 31 - 37

O evangelho de hoje continua o capítulo sete de São Marcos, porém salta a passagem da mulher sírio-fenícia. Não é de hoje que aquele povo sofre rejeições. Recentemente, os sírios vêm chamando a atenção política e humanitária do mundo. Ninguém pode ficar de fora dessa causa. Sem deixar uma coisa e outra, como sempre, pretendo algumas meditações e espero que sirvam de alguma maneira ao prezado leitor.

A morte do menino Aylan Kurdi, de três anos, criança síria encontrada morta na praia da Turquia, aos três deste, facilmente seria assunto da pregação deste domingo, se o evangelho fosse o de Marcos 7, 24 - 30, da mãe nascida na Fenícia da Síria, tendo a sua filha possuída pelo demônio. Pagã, e tratada como cachorro (Cf Mc 7, 27), ela é atendida por um extremo ato de fé e de coragem, em lutar pelas migalhas que as crianças deixam cair de suas mesas (Cf. Mc 7, 28).

31 Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galiléia, atravessando a região da Decápole.

Quem quiser que ache que estas perícopes não estão ligadas. Elas ocorrem na mesma região, entre Tiro e Sidônia. A região da Decápole compreendia o conjunto de dez cidades do alto comércio, entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, portanto, de grande fluxo de estrangeiros, diversidade social e religiosa, ou seja, Jesus está no olho do formigueiro. Em seu vai e vem se percebe a Sua capacidade de inserir-Se, mas antes, de atrair pessoas a Si, impar, ainda hoje.

32 Levaram então a Jesus um homem surdo e que falava com dificuldades, e pediram que Jesus pusesse a mão sobre ele.

Aquela mãe foi ao encontro de Jesus (Cf. Mc 7, 25), este surdo, por sua vez, foi conduzido até Ele. Isso é o caminho da catequese: ora alguém O procura ora alguém O apresenta. Talvez ele não fosse pagão e por isto o trouxeram. Ela, estrangeira e pecadora, que se vire! Lembremos ainda da hemorrágica que se espreita por debaixo da multidão, espoliada e envergonhada pelo tipo de impureza (Mc 5, 31), e da prostituta, trazida a Jesus, para um julgamento que encerra com uma das mais humanitárias sentenças já proferidas: “aquele que não tiver pecados que atire a primeira pedra” (Jo 8, 7), dada pelo juiz de todos nós.

Desde que iniciei na missão de pregar o evangelho, nas comunidades do interior de minha terra natal, Tobias Barreto – SE, e isto já completa vinte e cinco anos, que anúncio esta surdez como algo também espiritual. Mas foi na Teologia onde aprendi, de fato, tratar-se de não ouvir o que o Mestre tem a dizer. Todavia, uma freira me despertou para outra dimensão das curas de Jesus, que explicarei a seguir, no próximo verso.

Antes, porém, vale trazer em mente o simbolismo da imposição das mãos. Tanto espiritual quanto socialmente falando, quando alguém põe a sua mão sobre o outro está se aproximando e indicando que um e outro têm ligação. Há uma comunhão e intimidade que troca favores. Jesus extrai dores e doa bênçãos. Nós Lhe entregamos nossa fraqueza e, em troca, recebemos fortaleza.

33 Jesus se afastou com o homem para longe da multidão; em seguida pôs os dedos no ouvido do homem, cuspiu e com a sua saliva tocou a língua dele.

Note que, apesar de o terem trazido, Jesus o afasta deles. O mestre sabe, que em relação ao seu povo, o surdo era rejeitado. Esses companheiros não eram seus intérpretes. Uma das atitudes que denuncia alguém que serve, que ele não quer mais continuar servindo, é, justamente, quando dizem querer libertar o deficiente de sua fragilidade; quando, na verdade, escondem algum cansaço em continuar essa tarefa de dependência mútua. Salvo, claro, aqueles que têm uma vida tão dedicada. A lição da freira me pareceu uma verdade firme, que jamais esqueci, e pretendo repassá-la.

Aquela aula mais parecia uma psicologia pastoral. Ainda é viva em minha memória. O texto em estudo era este mesmo de São Marcos. A Irmã falou da necessidade de Jesus separar o surdo da comunidade para curá-lo. Disse ela que a permanência na comunidade não o curaria, pois a rejeição ensurdecia e calava a todos cada vez mais. Os seus compatriotas não o ajudavam a entender o que se passava à sua volta, não lhe interpretavam os sinais, nem deixavam que se expressasse ou opinasse. O surdo era apenas um rotulado de “mudo”, como tantos outros ainda hoje, que “não sabem o que dizem”, quando nós é que não entendemos as suas palavras.

Não creio que exageramos em afirmar a necessidade de, às vezes, sair do grupo que participamos para enxergar melhor o que ocorre ali dentro, quais tipos de cegueiras, surdez e mudez nos sentenciam; quais tapumes ideológicos, sociais e políticos, a cachorrada, melhor dizendo, que nos intimidava e, oprimidos, preferíamos ‘não ver’, ‘nada ouvir’, ‘menos falar’. Se a cura é social, esta também seria uma possível interpretação desse evangelho.

34 Depois olhou para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abra-se!”

Então esta seria a maior dificuldade de todos os tempos, posturas e pessoas: ‘abrir-se’. O novo, o vindouro e o próximo. Dos reis magos (Mt 12, 1 – 12), passando pelo semelhante do samaritano (Lc 10, 30 – 37), até Dimas, o bom ladrão (Lc 23, 39 – 43), não fosse esse Efatá prolongado, suspirado ao céu, clamado intimamente e proferido em alto e bom som. Sem ele, nem surdos nem audientes, jamais nos abriríamos à grandeza, à profundidade, à amplitude dessa ressonante ordem divina, em tom de proclamação afirmativa, positiva e impositiva. Por que ousaria ainda algo ou alguém permanecer fechado após o Senhor mandar abrir-se? A palavra de hoje é Abra-se, para o novo, para o outro, para a Vida.

35 Imediatamente os ouvidos do homem se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade.

Deixemos que os silenciados falem. Ouçamos o que têm a dizer os que não damos ouvidos. Chego até a pensar que quem muito fala, quem muito se pronuncia tem muito, mas muito pouco a dizer. Pensam que dizem muito porque se acham necessários. Falaria menos quem deixa que os outros também falem. Uma comunidade onde poucos falam, onde poucos podem falar, talvez seja uma comunidade de mudos e de surdos, logicamente. Alguns falam demais para que outros não falem mesmo. São maus interpretes, já que traduzem apenas os próprios interesses. Alegra saber que eloquência não é acúmulo de palavras, e quem muito fala, muito do que diz se perde.

A tirania, governo do medo e do terror, também é o governo de um só, onde só vale o que ele diz. O tirano governa para surdos-mudos. A sua ideologia mascara uma ‘preocupação’ com o estado de direito: o seu. Agora vejamos quão diabólico é algo semelhante a isto numa religião. Daí pode-se entender por que logo depois do exorcismo da filha da mulher sírio-fenícia vem a cura do surdo na comunidade.

Sem participação, sem acolhida de estranhos, sem escuta dos membros, uma organização não pode se considerar comunidade, uma religião poderá agradar a Deus (Cf. Tg 1, 27) e a humanidade não se reconciliará consigo mesma. Entre as máximas de “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe” (Rousseau) e “o homem é lobo do próprio homem” (Hobbes), estaríamos entre duas ondas sufocantes sem distinguir qual delas nos atingirá primeiro. Mas, graças a Deus, há outras ondas empurrando a humanidade: as que nos empurram para a margem. Queira Deus, antes do afogamento da humanidade própria de cada um, quem sabe, vem uma onda mais forte que diz: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas.” (Mt 7, 12) Ou se preferir na forma negativa: “Não faças a ninguém aquilo que não queres que te façam”, como disse Tobias (4, 15).

36 Jesus recomendou com insistência que não contassem nada a ninguém. No entanto, quanto mais ele recomendava, mais eles pregavam.

O silêncio de Jesus é mais messiânico que profético. Isto os teólogos ainda discutem. Fato é que não noticiar prodígios em grande multidão é praticamente impossível. Sobretudo na região em que Ele Se encontrava, palco de interesses políticos antigos, dada a posição geográfica favorável ao comércio. Comércio e informação caminham juntos há muito tempo. O silêncio messiânico diz respeito a sua ‘Hora’ que ainda não chegou. Quando o Filho do Homem for levantado, aí sim, Ele atrairá todos a Si. (Jo 12, 32) Nesta recomendação de Jesus não se trata de silenciar o Seu ato profético, isto seria pura covardia. Calar por medo não é próprio de Jesus. Seu silêncio tem uma data. Mas a eloquência de suas ações não O deixa no anonimato.

37 Estavam muito impressionados e diziam: “Jesus faz bem todas as coisas. Faz os surdos ouvirem e os mudos falarem”.

O Seu sucesso pastoral evoca o sucesso da criação que Ele restaura na bondade (Cf. At 10, 38). Suas ações vão remontando em seus curtos dias os mil anos de Deus (2Pd 3, 8). Cada gesto seu é recriador, é histórico-dialético, recapitula a vida do seu povo, evoca o passado, reconfigura-se no presente e transforma o futuro numa continuidade descontínua, no “já, mas não ainda” da Teologia, em que ‘já’ experimentamos nEle as realidades futuras, ‘mas não ainda’ definitivamente, pois o céu apenas se vislumbra, apenas se antecipa em Seu emigrante terreno mais notável, estrangeiro como todos nós (Cf. 1ª Pd 1, 10 – 12).

Sim, Ele fez bem todas as coisas! (Mc 7, 37) Temo que muito desse bem não seja tão bem entendido ainda ou tão bem anunciado, de modo que surdos ouçam, mudos possam falar e cegos enxerguem o que tantos parecem esconder. Não fechemos as portas que Jesus deixou abertas!

Tenhamos todos uma semana de maior abertura de mente e coração para o bem de todos e da humanidade!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo
06 de setembro de 2015

Pe. Adeilton Santana Nogueira
http://diariosergipano.com.br/site/2015/09/15/abra-se

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