domingo, 9 de agosto de 2015

SER BEM (EU)

Jo 6, 41 – 51

Na semana passada havíamos dito que aprofundaríamos a imagem do alimento ingerido que se converte em um só ser junto a quem o ingere. Na verdade o que pretendemos é dizer diferente, pois S. Agostinho já nos tinha explicado o que ocorre na refeição sagrada. Ele parte do cenário de uma guerra onde quem é mais poderoso vence o mais fraco e diz que na comunhão do Corpo de Cristo não é Ele, como alimento, quem se transforma no comungante, mas aquele que o recebe é quem vai se configurando a Cristo.

Na digestão comum é um pouco parecido com isto. Quando nos alimentamos, as substâncias, discretamente, são distribuídas em nosso organismo trazendo vitalidade ou mesmo alguma anormalidade. Mas as diferenças da mesa de Jesus e das nossas são bem maiores que as suas semelhanças. O alimento que é Jesus é de vida eterna e, por isso, se traz condenação é porque foi tomado indignamente (1Cor 11, 27).

41 Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus porque havia dito: “Eu sou o pão que desceu do céu”.

Este capítulo sexto de São João ainda será lido por mais dois domingos. Há muito que aprofundar nesta catequese do Pão da Vida. Estamos no meio do Ano Litúrgico, como já afirmamos, e estamos sendo preparados para a decisão mais importante do cristão: viver Jesus. Esta é uma mudança de mentalidade que diz respeito a toda a vida, ou melhor, à vida inteira. Sem pedaços, sem horários repartidos, do tipo ‘é a minha vida’ ou ‘faço o que quero’.

A figura do alimento se presta para esta imagem da necessidade vital e da humildade de que a vida não está dentro de nós, em nós mesmos como se fosse algo que se nutra sem alguma recarga externa. A vida que temos nos foi dada, e continua sendo dada, e é encontrada de fora para dentro. Assim como o alimento ela é cultivada e colhida; nasce fora, mas deve ser ingerida, saboreada, digerida e convertida novamente em ação externa de cultivo da própria vida. Essa dinâmica circular é envolvente. Lembra a vida divina que não se encarcerou nos céus, mas nos criou e se dirige a nós.

42 Eles comentavam: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?”

Há um mistério cósmico, físico quântico, em tudo que fazemos e somos. Estamos, inevitavelmente, ligados uns aos outros. Há uma sequência ultratemporal e espacial na vida de cada um de nós, que nos intervala e nos faz ser de todos, nunca sozinha. Não posso dizer ‘minha vida’ quando há tantas pessoas ligadas a mim, mesmo sem intimidade. Mesmo que não as ame, dependemos delas e elas dependem de nós. É incrível o laço que une as vidas. É quase inacreditável a corrente que nos prende.

43 Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia. 45 Está escrito nos profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’. ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim. 46 Não que alguém já tenha visto o Pai. Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.

É que Jesus não se refira à Sua vida, e à vida que Ele dá, sem antes aludir ao seu Pai. Ele dá, mas daquilo que recebeu (Cf. Jo 10, 17); Ele veio ao mundo, porém foi enviado (Cf. Jo 6, 38); Ele prega, mas daquilo que ouviu o Pai dizer (Cf. Jo 8, 28). Que belo texto para ser lido no dia dos Pais, como neste segundo domingo de agosto de 2015. Tentaram identificá-lo com a sua família terrena, mas logo Ele os alça num patamar ainda mais superior. Somos todos de uma família comum que se origina e se estende aos céus.

47 Em verdade, em verdade vos digo, quem crê, possui a vida eterna. 48 Eu sou o pão da vida. 49 Vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram.

Jesus não vem simplesmente nos buscar, como querem alguns cristãos do arrebatamento. Estes vivem à espera de ser retirados desta vida, por vezes dolorosa, indigna e indesejável. Todavia Jesus não nos alheia do mundo, não pede que sejamos tirados dele, mas que sejamos mais fortes que o mal (Cf. Jo 17, 15). Quem se alimenta dEle, cotidianamente, não será vencido pelas mortes e perdas ininterruptas dessa vida presente aqui no mundo, não há morte para quem dEle se alimenta; costumo dizer que não há perdas em Deus.

50 Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá.

A eucarístia, do grego EU = bem + KHARIZESTHAI (KHARIS = graça) ‘boas graças, bem dizer’, é nome dado a todo o ritual da liturgia da missa, mas também ao pedaço de pão sem fermento, à hóstia (sacrifício), que se consagra no altar. É Jesus em Corpo, sangue, alma e divindade. É Ele, porque disse de Si mesmo: ‘Eu sou’ e ‘Isto é o Meu corpo... Isto é o Meu sangue’. Não creio ter sido simplista, por não fazer longas citações dos teólogos clássicos ou dos mais citados, tampouco do magistério eclesiástico, preferi citar ipsissima verba Christi. Ele é quem melhor fala de Si.

51 Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”.

Há, além do que foi dito acima, outra tônica necessária a estas palavras da própria boca de Jesus. Além de entendermos que Jesus é, e não apenas está na hóstia consagrada, precisamos aprofundar sua fala de que o alimento que é a Sua carne literal, vertida em pão e pão vertido em carne, é a Sua carne “dada para a vida do mundo”. Muito se lê que esta doação ocorre no alto da cruz. Quando a Sua carne é macerada e exposta. Mas também se lê que toda a vida de Cristo é entrega e doação, rendição e oferta de Si mesmo. Cristo já se doa desde a concepção virginal de Maria Santíssima, no anúncio do anjo, ou mesmo no diálogo trinitário de Sua encarnação. A dimensão do serviço toma a expressão material, dialética e histórica, da verdadeira comunhão eucarística e do verdadeiro testemunho de fé. Servir seria a materialidade da vida em Cristo, para alguns. Há até quem diga que “quem não vive para servir, não serve para viver”.

No entanto a expressão: “a minha carne dada para a vida do mundo” se referiria a toda a existência de Cristo na carne. Arriscaria em dizer que, se Ele passou no mundo fazendo o bem (Cf. At 10, 38) a vida do servo é fazer o bem. Há momentos em que o professor não leciona, nem está estudando ou preparando aulas, como há momentos na vida do padre em que ele não está celebrando, ou mesmo de hábito sacerdotal.

O que quero dizer é que haverá um dado momento na vida em que tudo nos será tirado, seja no descanso, seja no banho de asseio ou em outra situação mais drástica. Nessa hora, em que nos faltará qualquer expressão externa de quem nos sentimos por dentro ou de como nos veem, o que seremos de fato? O Cardeal Koreano Van Thuan, na solitária aprisionado, não podia celebrar a missa de preceito, segundo me contou Pe. Tanag, colega em um curso na Itália, também Koreano. Quando estivermos prostrados pela idade ou enfermidade, ou quando simplesmente nos tirarem as possibilidades, como serviremos? Como o ser Jesus eucarístico poderá continuar se dando ‘para a vida do mundo’?

Desejo a você que descubra como a eucaristia, alimento do cristão, pode lhe transformar em um cristão mais parecido com Jesus, ao ponto de que também se diga quando você passar: eis uma pessoa boa, alguém que faz o bem. O bem está na raiz da palavra ‘eucaristia’, por isso testifica e legitima todo serviço cristão. O ‘fazer’ precisa ‘ser’, do contrário trairá a essência da vida. O mesmo Jesus que faz o bem é Aquele que é a Vida (Cf. Jo 14, 6). De fato, quem O recebeu e se alimentou dEle se parecerá com Ele. Não deve ser à toa que ‘bem’ em grego seja ‘EU’. Sem querer ferir a semântica da língua, acho que merece pensar nisto. Boa semana! Esteja bem! Seja bom (boa)! E feliz dia dos pais!

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...
09.08.2015
Pe. Adeilton Santana Nogueira


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